Em sua quarta carta à comunidade internacional, a presidência brasileira da COP30 lançou uma proposta ambiciosa e inovadora: transformar o processo multilateral de resposta à crise climática em um verdadeiro mutirão global de ação coordenada. O documento, apresentado em 20 de junho de 2025 durante as reuniões preparatórias da UNFCCC em Bonn, marca um novo momento na trajetória diplomática do Brasil, ao propor que a Conferência de Belém inaugure uma era de implementação sistêmica, concreta e inclusiva do Acordo de Paris.
Mais do que lançar novas metas, a presidência da COP30 propõe um novo marco de orientação global, ancorado nos resultados do primeiro Balanço Global (Global Stocktake – GST) e materializado por meio de uma Contribuição Globalmente Determinada (GDC), que amplie a ambição, alinhe esforços e mobilize atores estatais e não estatais ao redor de objetivos comuns. A proposta confere nova centralidade ao GST, transformando-o de ferramenta de avaliação em bússola coletiva e norte permanente da ação climática internacional.
O papel estratégico da presidência da COP e o uso diplomático das cartas
A publicação de cartas por parte da presidência da COP tem se consolidado como uma ferramenta diplomática importante para orientar e mobilizar o processo intergovernamental de resposta à crise climática. Ainda que essas cartas não tenham valor jurídico vinculante, elas exercem um papel político central por ao menos três razões:
Em primeiro lugar, as cartas permitem à presidência compartilhar sua visão estratégica com as Partes da UNFCCC e com a sociedade internacional. Elas funcionam como sinalizações antecipadas das prioridades temáticas, da lógica de negociação e das soluções esperadas, oferecendo maior previsibilidade e clareza ao processo.
Em segundo lugar, esses documentos abrem espaço para um diálogo direto com atores não estatais — como a sociedade civil, o setor privado, a academia, as juventudes e os povos indígenas — promovendo uma agenda mais inclusiva e democrática, conectada aos diversos segmentos sociais que atuam na linha de frente da ação climática.
Por fim, as cartas ajudam a construir legitimidade política e diplomática. Como a presidência da COP muda a cada ano, o país anfitrião precisa se apresentar à comunidade internacional, demonstrar sua capacidade de liderança e articular uma agenda que vá além do interesse nacional, assumindo um papel de facilitador do consenso global.
No caso da COP30, o Brasil vem exercendo essa função de forma ativa e estratégica. As quatro cartas já publicadas têm demonstrado maturidade diplomática e ambição política, ao propor uma nova arquitetura de implementação do Acordo de Paris baseada em seis eixos temáticos, 30 objetivos estratégicos e um chamado à ação coletiva global por meio do conceito de mutirão climático.
Mais do que documentos preparatórios, essas cartas se tornaram instrumentos de convocação política e mobilização multissetorial. Elas antecipam os contornos da COP30, ajudam a engajar os principais atores e fortalecem o papel do Brasil como articulador de uma nova fase do regime climático internacional: a era da implementação com participação.
A ciência como ponto de partida e a urgência como imperativo
A carta, assinada pelo embaixador André Corrêa do Lago, presidente designado da COP30, parte de uma constatação clara: o tempo se esgota e a ciência já ofereceu os elementos necessários para a tomada de decisão. Como afirmou o próprio diplomata, “não precisamos de novas negociações para começar a implementar o que já foi acordado”. O foco agora deve recair na execução urgente dos compromissos existentes, com base no que já foi definido nos textos da UNFCCC e do Acordo de Paris.
Nesse sentido, o uso do GST como uma “Contribuição Globalmente Determinada” (GDC) é uma inovação institucional. A ideia é transformar as conclusões do GST em um guia prático de ação para governos, setor privado, sociedade civil, comunidades locais, universidades e todos os demais atores climáticos.
Seis eixos estratégicos e 30 objetivos para orientar a ação climática
A nova Agenda de Ação proposta pela presidência da COP30 será estruturada como um celeiro de soluções concretas, organizado em torno de seis eixos temáticos:
- Transição energética, industrial e de transportes
- Proteção de florestas, oceanos e biodiversidade
- Transformação da agricultura e dos sistemas alimentares
- Resiliência urbana, hídrica e de infraestrutura
- Desenvolvimento humano e social
- Aceleradores e facilitadores transversais — como financiamento, tecnologia, digitalização e fortalecimento institucional
Sob esses eixos, a presidência identificou 30 objetivos-chave, considerados “super pontos de alavancagem” para impulsionar transformações sistêmicas. Entre eles, estão: a triplicação da energia renovável global, a eliminação do desmatamento até 2030, a universalização do acesso à energia limpa, a restauração de ecossistemas costeiros, a implementação de construções resilientes, o uso da inteligência artificial para inovação climática e a consolidação de uma bioeconomia justa.
Para acelerar sua implementação, serão criados Grupos de Ativação para cada um dos objetivos, conectando governos, comunidades, empresas, cientistas e ONGs em torno de soluções replicáveis e financeiramente viáveis.
O mutirão como símbolo político: do sul do Brasil ao mundo
A carta resgata o espírito de solidariedade visto durante as inundações no estado do Rio Grande do Sul em 2024, quando a resposta da população brasileira foi marcada por mutirões comunitários que articularam sociedade civil, Estado e setor privado. Esse modelo de ação coletiva é agora proposto como a lógica orientadora da COP30.
Inspirado nesse exemplo, o presidente designado propõe que a Agenda de Ação seja, de fato, um mutirão climático global — com engajamento multissetorial e multinível, desde comunidades locais até organismos multilaterais. A construção do futuro climático, segundo a proposta, passa pela soma de capacidades, saberes e esforços de diferentes realidades e setores sociais.
Transparência, prestação de contas e justiça climática
A nova arquitetura da Agenda de Ação também incorpora um pilar de acompanhamento, transparência e prestação de contas, alinhado aos sistemas do Acordo de Paris. A presidência reforça que os compromissos assumidos no âmbito da Agenda de Ação deverão ser verificáveis, mensuráveis e sujeitos a monitoramento regular.
Além disso, a carta destaca a importância de que todas as soluções adotadas sejam norteadas por critérios éticos, científicos e de justiça climática. A transição energética e ecológica deve enfrentar as desigualdades estruturais, garantir uma distribuição justa dos custos e benefícios, e assegurar que os mais vulneráveis — especialmente povos indígenas, comunidades tradicionais, juventudes e populações empobrecidas — sejam beneficiados prioritariamente.
A convergência entre ambição, ação e participação
A presidência da COP30 se compromete a trabalhar em estreita colaboração com os High-Level Climate Champions Dan Ioschpe e Nigar Arpadarai, com os enviados especiais da COP30, com os jovens e com os círculos temáticos anunciados nas cartas anteriores. O objetivo é consolidar a Agenda de Ação como um instrumento duradouro de implementação e mudança sistêmica, que vá além da COP30 e estabeleça uma nova dinâmica internacional de ação climática.
O Brasil também convida todas as coalizões e plataformas já existentes — como a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, lançada em 2024 no G20 — a integrar seus esforços à Agenda de Ação, contribuindo com soluções baseadas em evidências e ancoradas na integração entre clima, inclusão social e desenvolvimento sustentável.
Conclusão: a sociedade civil como protagonista da transformação
A quarta carta da presidência da COP30 deixa uma mensagem inequívoca: não haverá implementação efetiva do Acordo de Paris sem a participação ativa da sociedade civil. O mutirão proposto pelo Brasil é mais do que uma metáfora — é um chamado político à ação coletiva e à mobilização de todos os setores, com protagonismo de quem está na linha de frente da crise climática.
Organizações não governamentais, redes de juventude, movimentos sociais, povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais, universidades e coletivos territoriais devem estar no centro da COP30 — não como espectadores, mas como coprodutores da agenda climática global.
Belém tem o potencial de se tornar a COP da implementação, mas também pode — e deve — ser a COP da participação democrática, do reconhecimento da diversidade de saberes e da valorização da justiça climática. O Brasil abriu o caminho: cabe agora à comunidade internacional — e, sobretudo, à sociedade civil global — tomar a palavra, ocupar os espaços e construir, junto, o futuro que precisamos.
O momento do mutirão é agora. E não há mutirão sem o povo.
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