Este reconhecimento reforça a relevância internacional do trabalho do Instituto Aimara na promoção da justiça climática, da igualdade de gênero e dos direitos das mulheres em territórios amazônicos e costeiros. A contribuição enviada pelo Instituto — elaborada em conjunto com parceiros estratégicos que desempenham um papel essencial no cenário nacional de justiça climática — destacou os impactos da transição energética sobre mulheres indígenas, quilombolas, pescadoras e rurais, além de apresentar recomendações concretas para uma transição justa e popular.
A participação foi desenvolvida em colaboração com:
- Universidade Federal do Pará (UFPA)
- Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares (INEAF/UFPA)
- ActionAid Brasil
- Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
- Universidade Federal da Bahia (UFBA)
- Defensorias Públicas dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro
A contribuição coletiva enfatizou que o modelo atual de transição energética no Brasil tem reproduzido desigualdades estruturais, afetando de forma desproporcional as mulheres de comunidades tradicionais. O documento submetido ao Relator denunciou a ausência de consulta livre, prévia e informada, o avanço de empreendimentos eólicos e solares sem garantias de participação e o agravamento de violações socioambientais — configurando um cenário de colonialismo energético e climático.
O texto propôs que a transição energética seja redesenhada sob uma perspectiva decolonial, descentralizada e descarbonizante, centrada na autodeterminação dos povos e na soberania dos territórios, com base em experiências de agroecologia, energia comunitária e justiça territorial.
🌍 A importância do relatório para o direito internacional
O relatório “Nexus between Gender Equality and the Right to Development” representa um marco normativo e interpretativo no direito internacional contemporâneo, ao consolidar a relação mutuamente reforçadora entre a igualdade de gênero e o direito ao desenvolvimento.
O documento, apresentado ao Conselho de Direitos Humanos, demonstra como a igualdade de gênero para meninas e mulheres conduz à realização do direito ao desenvolvimento, e como a efetivação desse direito, por sua vez, fortalece a igualdade de gênero. Ao fazê-lo, o Relator Especial defende que assegurar a igualdade de gênero contribui diretamente para a construção de um mundo mais inclusivo, pacífico e sustentável.
Além disso, o relatório explica como os elementos centrais do direito ao desenvolvimento — a dimensão coletiva, a participação nas decisões, a distribuição justa dos benefícios, a interseccionalidade e a cooperação internacional — devem ser mobilizados como ferramentas jurídicas para alcançar a igualdade substantiva na sociedade.
Do ponto de vista jurídico, o relatório tem impacto significativo na formação progressiva do direito internacional:
- Reforça a indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, integrando igualdade de gênero e desenvolvimento em um mesmo arcabouço normativo;
- Densifica o conteúdo jurídico do direito ao desenvolvimento, tradicionalmente tratado como direito programático, ao definir obrigações concretas para os Estados;
- Introduz uma perspectiva feminista e decolonial no campo do desenvolvimento, reconhecendo as desigualdades de gênero como resultado de estruturas econômicas e políticas globais;
- E fortalece a cooperação internacional como dever jurídico, vinculando financiamento, tecnologia e solidariedade ao combate das desigualdades estruturais.
Por ter sido apresentado oficialmente ao Conselho de Direitos Humanos, o relatório passa a servir como referência interpretativa para os órgãos de tratados, agências da ONU e mecanismos internacionais de monitoramento, orientando políticas públicas e decisões futuras sobre igualdade de gênero, transição energética e desenvolvimento sustentável.
✳️ Compromisso contínuo
A menção ao Instituto Aimara neste relatório histórico é motivo de orgulho coletivo. Ela reconhece o compromisso da sociedade civil brasileira com a defesa dos direitos humanos, da justiça climática e da igualdade de gênero.
O Instituto reafirma seu papel como espaço de educação ambiental, pesquisa e advocacia, atuando de forma colaborativa com universidades, defensorias públicas e movimentos sociais. Nosso compromisso é seguir contribuindo para que o direito ao desenvolvimento seja reinterpretado à luz da emergência climática, com base na equidade, na soberania dos povos e na proteção dos bens comuns — princípios que inspiram uma transição verdadeiramente justa, popular e planetária.
✳️ Da contribuição submetida
A emergência climática impõe-se como um dos maiores desafios civilizatórios do século XXI, com impactos que ameaçam simultaneamente os direitos humanos, a integridade dos ecossistemas e as bases do desenvolvimento sustentável. No Brasil, o avanço de um modelo econômico baseado na exportação de commodities, na financeirização da natureza e na concentração fundiária tem agravado desigualdades estruturais e ampliado a vulnerabilidade de povos e comunidades tradicionais.
À luz do mandato do Relator Especial das Nações Unidas sobre o direito ao desenvolvimento, a presente contribuição tem por objetivo evidenciar os obstáculos sistêmicos e as práticas de exclusão que comprometem a efetividade desse direito no contexto brasileiro, bem como apresentar recomendações orientadas pelos princípios da justiça climática, da equidade de gênero e da autodeterminação dos povos.
O texto parte do reconhecimento de que o direito ao desenvolvimento não pode ser exercido à margem da crise climática, e que sua concretização depende da transição para um modelo econômico justo, descolonial e centrado nas pessoas e no planeta. A noção de “desenvolvimento centrado no planeta” implica superar o paradigma de crescimento ilimitado e promover políticas públicas orientadas por direitos, transparência, participação e reparação.
Essa abordagem reforça os compromissos assumidos pelos Estados no âmbito da Agenda 2030, do Acordo de Paris e da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), reafirmando que a justiça climática é condição para a realização integral do direito ao desenvolvimento.
Mulheres, Território e Desenvolvimento
O modelo de transição energética adotado no Brasil tem reproduzido padrões históricos de desigualdade e exclusão, afetando de forma desproporcional mulheres de comunidades indígenas, quilombolas, pesqueiras, extrativistas e rurais. Sob o discurso da “economia verde”, grandes empreendimentos eólicos, solares e de mineração têm sido implementados sem consentimento livre, prévio e informado (CLPI), em violação à Convenção n.º 169 da OIT e aos princípios da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
Essa ausência de diálogo tem resultado em deslocamentos forçados, perda de territórios ancestrais, contaminação ambiental, insegurança alimentar e energética e rompimento de vínculos comunitários. A intensificação da extração de minerais críticos — como o lítio — agrava tais impactos. No Vale do Jequitinhonha (Minas Gerais), comunidades denunciaram violações de direitos humanos associadas à atuação da empresa Sigma Lithium. Apesar das exportações em larga escala, sobretudo para a China, a região permanece marcada por pobreza estrutural e ausência de mecanismos de participação efetiva. Moradores relatam aumento de doenças respiratórias, rachaduras em moradias, isolamento e destruição de laços comunitários. O falecimento de Custódia Ribeiro de Matos Santos, aos 96 anos, tornou-se símbolo da vulnerabilidade imposta às populações locais.
Esse modelo de desenvolvimento, sustentado por licenciamentos ambientais frágeis e pela omissão estatal na garantia do CLPI, transforma territórios em zonas de sacrifício, perpetuando um ciclo de violência e expropriação. Longe de promover justiça, aprofunda as desigualdades de gênero, raça e classe e compromete a autodeterminação dos povos.
No cenário geopolítico atual, o Brasil tem se destacado na liderança da Aliança Global de Biocombustíveis, iniciativa que, embora estratégica em termos energéticos, acentua a precarização do trabalho rural, especialmente entre cortadores de cana expostos a agrotóxicos sob condições análogas à escravidão. A continuidade da exportação de pesticidas proibidos na União Europeia configura uma forma de colonialismo químico, que afeta de maneira desproporcional agricultoras familiares, comunidades negras e povos indígenas. Entre 2000 e 2021, o uso de agrotóxicos quintuplicou no país, com 14 substâncias detectadas inclusive em amostras de chuva.
A assinatura do acordo Mercosul–União Europeia e a intensificação da disputa comercial entre Estados Unidos e China reforçam esse modelo predatório, que prioriza interesses corporativos em detrimento dos direitos humanos e ambientais.
Essas violações foram amplamente denunciadas durante a consulta virtual com o Relator Especial e em eventos internacionais realizados em 2024 e 2025. Bianca Santos Lopes, da Associação de Produtores Assentados Chico Castro Alves (APACC), destacou os impactos do uso massivo de agrotóxicos sobre mulheres e jovens rurais, além da inversão do ônus da prova na certificação da produção familiar. Rosenilde Gregória dos Santos Costa, do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), relatou os efeitos do desmatamento e da pulverização aérea sobre o modo de vida tradicional das quebradeiras, que resistem por meio de iniciativas como o projeto “Floresta Babaçu em Pé”, apoiado pelo Fundo Amazônia. Solange de Oliveira Matos, do Comitê de Energias Renováveis do Semiárido (CERSA), apresentou experiências de 70 famílias agricultoras na Paraíba que, com apoio de fundações do Banco do Brasil e do Banco do Nordeste, desenvolveram projetos agroecológicos e uma padaria solar que abastece programas públicos e mercados locais. Essas iniciativas fortalecem a soberania alimentar e energética e contribuem para a preservação do bioma Caatinga.
No Brasil, tem-se observado uma transação, e não uma transição. A persistente ausência de regularização fundiária aprofunda a vulnerabilidade de comunidades tradicionais — especialmente de mulheres negras e indígenas — ao restringir o acesso a políticas públicas, crédito, assistência técnica e segurança jurídica.
A transição energética justa exige, portanto, uma abordagem descolonial, descentralizada e descarbonizante, baseada na participação ativa das comunidades e no reconhecimento de seus saberes tradicionais. O Acordo de Escazú constitui um marco fundamental nesse processo, ao reconhecer grupos em situação de vulnerabilidade como titulares prioritários de direitos (artigo 2º, alínea e). No entanto, sua efetividade depende não apenas da ratificação — ainda pendente no Brasil e no Peru —, mas também da implementação de medidas concretas, como a regularização fundiária e o fortalecimento institucional.
Assim, recomenda-se:
-
a ratificação imediata do Acordo de Escazú;
-
o reconhecimento da transição energética como processo de reparação histórica;
-
o apoio direto a iniciativas lideradas por mulheres e comunidades locais;
-
a fiscalização rigorosa de contratos energéticos;
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o fortalecimento das Defensorias Públicas e de mecanismos de acesso à justiça; e
-
a revisão dos modelos de desenvolvimento impostos sem consulta, em conformidade com os princípios de participação, inclusão e reparação.
✳️ Financiamento para uma Transição Justa e Centrada nas Pessoas
Os atuais mecanismos de financiamento climático e de desenvolvimento sustentável permanecem amplamente baseados em instrumentos de mercado, cuja lógica privilegia a rentabilidade financeira em detrimento da justiça socioambiental. No contexto brasileiro, essa dinâmica tem reforçado assimetrias históricas e reproduzido padrões de exclusão que afetam de maneira desproporcional as comunidades tradicionais, os povos indígenas, as mulheres rurais e a juventude camponesa.
Embora iniciativas como créditos de carbono, programas de compensação e certificações ambientais sejam frequentemente apresentadas como soluções inovadoras, diversos estudos, reportagens investigativas e litígios judiciais demonstram que esses instrumentos têm contribuído para a concentração de recursos em grandes corporações, aprofundando práticas de captura regulatória, corrupção e “rent-seeking” — fenômeno entendido como a apropriação privada de benefícios públicos mediante influência política.
Nos biomas Amazônia e Cerrado, observa-se a consolidação de um neocolonialismo climático, no qual projetos de REDD+ e de restauração florestal têm se transformado em mecanismos de expropriação territorial, denominados pelas comunidades locais de “climate grabbing” e protagonizados por chamados “carbon cowboys”. Em vez de fortalecer a resiliência comunitária, essas iniciativas frequentemente geram conflitos socioambientais, insegurança fundiária e dependência econômica.
A distorção torna-se ainda mais evidente no campo do reflorestamento. Projetos financiados com recursos públicos destinados à geração de créditos de carbono — como o da empresa Mombak, beneficiada com R$ 100 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) — têm substituído ecossistemas nativos por monocultivos de espécies exóticas, formando os chamados “desertos verdes”. Essa prática provoca degradação do solo, redução da biodiversidade, pressão sobre recursos hídricos e desequilíbrios ecológicos, além de desconsiderar o papel das populações locais na gestão sustentável dos territórios.
A crise é agravada pela intensificação dos incêndios florestais. Entre 1998 e 2024, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) registrou 5,9 milhões de focos de calor, sendo 278 mil apenas em 2024 — o maior número desde 2010, com metade concentrada na Amazônia. A predominância desses incêndios em áreas de vegetação nativa evidencia os limites de estratégias compensatórias e a urgência de políticas de prevenção integradas e territorializadas.
Relatórios recentes de instituições multilaterais também apontam o caráter desigual da distribuição de crédito rural no Brasil. Segundo o Banco Mundial (2025), 6% dos contratos concentram 44% dos recursos, enquanto os agricultores familiares — que representam 75% dos contratos — acessam apenas 20% do total. No Plano Safra 2024/2025, mais de R$ 400 bilhões foram destinados ao agronegócio, em contraste com apenas R$ 76 bilhões (15%) à agricultura familiar. O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), principal instrumento de apoio a mulheres, jovens, povos indígenas e comunidades tradicionais, enfrenta graves barreiras de acesso. No estado do Pará, por exemplo, 94% dos recursos foram destinados à pecuária, em detrimento de iniciativas agroecológicas e sustentáveis.
Enquanto isso, isenções fiscais concedidas à indústria de agrotóxicos alcançaram R$ 6,3 bilhões em 2024, subsídios atualmente questionados perante o Supremo Tribunal Federal (ADI 5553). Essa política de incentivos transfere recursos públicos a setores responsáveis pela contaminação do solo, da água e do ar, violando princípios constitucionais de precaução, prevenção e justiça intergeracional.
Esses dados evidenciam que as políticas públicas continuam a sustentar um modelo ecocida de desenvolvimento, estruturado na exportação de commodities e na exclusão sistemática das comunidades tradicionais. A omissão estatal quanto aos impactos do agronegócio — inclusive em relatórios oficiais — reflete um silêncio estrutural que perpetua injustiças históricas.
A transição energética e ecológica não pode se apoiar exclusivamente em soluções de mercado. A efetividade de uma transição justa exige o fortalecimento de respostas comunitárias, baseadas em território e fundamentadas nos conhecimentos tradicionais. Iniciativas de agroecologia, nesse sentido, constituem instrumentos de transformação estrutural e de promoção da soberania alimentar, da justiça de gênero e da preservação da biodiversidade.
A agroecologia deve ser compreendida não apenas como método de produção, mas como movimento sociopolítico que integra justiça ambiental, direitos humanos e igualdade racial e de gênero. Programas públicos como o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO 2024–2027) e o Programa ECOFORTE demonstram a viabilidade de políticas públicas baseadas em sustentabilidade, equidade e participação social. Essas iniciativas fortaleceram redes agroecológicas, ampliaram o acesso de mulheres e jovens a recursos produtivos e impulsionaram a aquisição pública sustentável, especialmente no fornecimento de alimentos para escolas e programas sociais.
Apoiar a agroecologia é promover uma transição justa. A justiça climática é indissociável da justiça de gênero, racial, territorial e intergeracional. A emergência climática deve ser compreendida como limite ético e ecológico ao modelo de desenvolvimento, exigindo a superação das práticas de financeirização da natureza e a centralidade de princípios como soberania alimentar, autodeterminação dos povos e direitos territoriais.
Reinterpretar o direito ao desenvolvimento implica romper com o paradigma de acumulação ilimitada e afirmar que o desenvolvimento só é legítimo quando compatível com os direitos humanos e os limites planetários.
A Centralidade da Emergência Climática
A emergência climática constitui uma crise civilizatória sem precedentes, cujos efeitos já transcendem fronteiras geográficas, temporais e institucionais. Seus impactos ameaçam os fundamentos do desenvolvimento humano, agravando desigualdades estruturais e comprometendo a efetividade dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. O aumento das temperaturas médias globais, a perda acelerada da biodiversidade e a intensificação de eventos climáticos extremos revelam a insuficiência dos marcos regulatórios e das respostas institucionais vigentes.
Entre 1995 e 2024, a taxa média de aquecimento global aumentou de 0,24°C para 0,36°C por década, aproximando o planeta de pontos de não retorno ecológico (tipping points). Estudos científicos recentes indicam que o aquecimento acima de 1,5°C poderá desencadear transformações irreversíveis, como o colapso da Floresta Amazônica, o derretimento das calotas polares e a acidificação dos oceanos. No cenário de altas emissões (RCP8.5), o Centro-Oeste brasileiro poderá ultrapassar 2°C de aquecimento até 2030, com consequências particularmente graves para populações em situação de vulnerabilidade social.
No Brasil, o avanço da degradação ambiental é resultado de um projeto histórico de ocupação e exploração territorial consolidado a partir da década de 1970, baseado na expansão do agronegócio e da mineração. Tal modelo — sustentado pela concentração fundiária, pelo desmatamento, pelo uso intensivo de agrotóxicos e pela queima de biomassa — transformou o agronegócio na principal fonte de emissões de gases de efeito estufa (GEE) do país. Em 2024, o Brasil registrou o maior número de incêndios florestais da década, com impactos devastadores sobre ecossistemas e comunidades tradicionais.
Essas práticas configuram um processo contínuo de ecocídio, entendido como a prática de atos ilegais ou irresponsáveis cometidos com a consciência de que há probabilidade substancial de causar danos graves, generalizados ou duradouros ao meio ambiente. Como advertiu a jurista Polly Higgins, “é preciso deter o trem desgovernado da destruição que nós mesmos colocamos em movimento; freá-lo suavemente não será suficiente”. A continuidade desse modelo agrário-extrativista e de exportação de commodities constitui violação direta às obrigações internacionais de direitos humanos, à luz da Convenção Americana, do Acordo de Paris e da Agenda 2030.
Entre 1995 e 2019, o volume global de exportação de soja cresceu de 32 para 154 milhões de toneladas, consolidando o Brasil como maior exportador mundial — especialmente para o mercado chinês. Essa expansão está diretamente associada ao avanço do desmatamento, das queimadas e da contaminação por agrotóxicos em territórios indígenas, quilombolas e camponeses. A transformação da Amazônia e do Cerrado em fronteiras agrícolas globais reflete uma lógica de financeirização da natureza e de subordinação dos bens comuns aos interesses do capital financeiro e comercial internacional.
O Relatório Nexus do IPBES (2024) confirma que a biodiversidade global tem declinado entre 2% e 6% por década, impulsionada por mudanças no uso da terra, pela emergência climática, pela superexploração dos recursos naturais e pela poluição. No caso brasileiro, a degradação é agravada pelo uso massivo de agrotóxicos e pela expansão de monocultivos, que reduzem a diversidade genética e afetam a resiliência dos ecossistemas.
Enquanto, nos países do Norte Global, o setor energético é a principal fonte de emissões, no Brasil 75% das emissões derivam de mudanças no uso da terra (48%) e da agricultura (27%). Esses dados confirmam a natureza estrutural do agronegócio na crise climática nacional e reforçam a necessidade de uma transição de paradigma que integre justiça ambiental, soberania alimentar e proteção de povos e comunidades tradicionais.
A emergência climática não pode ser tratada como pano de fundo das políticas de desenvolvimento: ela deve ser o eixo interpretativo central do direito ao desenvolvimento. Isso significa compreender que nenhum projeto de desenvolvimento é legítimo se não incorporar os limites planetários e as obrigações derivadas do direito internacional dos direitos humanos.
Nesse sentido, é essencial adotar uma visão de “desenvolvimento centrado no planeta”, que articule soberania dos povos, solidariedade internacional e proteção da Terra como condição existencial. Essa abordagem requer o fortalecimento da cooperação multilateral, a ampliação do acesso a tecnologias limpas, o combate às desigualdades históricas e o reconhecimento de que os territórios e as comunidades são sujeitos de direito — e não meros beneficiários de políticas públicas.
Os mecanismos internacionais de direitos humanos, particularmente os Procedimentos Especiais do Conselho de Direitos Humanos e os órgãos de tratados, desempenham papel crucial nesse processo. A atuação independente desses mecanismos tem contribuído para revelar padrões de violação e orientar Estados e instituições financeiras internacionais no cumprimento de suas obrigações de diligência devida. A integração entre os sistemas da ONU, da OEA e do Acordo de Paris é fundamental para assegurar coerência normativa e proteção efetiva diante da emergência climática.
Reconhecer a emergência climática como eixo estruturante do direito ao desenvolvimento é reconhecer que a crise ambiental é também uma crise de direitos humanos e de governança global. Uma transição verdadeiramente justa só será possível mediante o fortalecimento de instituições democráticas, a reparação de injustiças históricas e a valorização dos conhecimentos e práticas de resistência das comunidades locais.
Recomendações
A efetivação do direito ao desenvolvimento em contexto de emergência climática requer ações estruturais, multiescalares e interinstitucionais, que coloquem os direitos humanos e a justiça climática no centro das políticas econômicas, fiscais e ambientais. Com base nas evidências apresentadas e nos testemunhos coletados, as seguintes recomendações são dirigidas ao Estado brasileiro, às instituições multilaterais de financiamento, aos organismos da ONU e aos parceiros internacionais:
1. Fortalecimento da gestão comunitária e territorial
Os planos e instrumentos de gestão elaborados por comunidades locais — como Planos de Manejo de Unidades de Conservação, Planos de Utilização de Assentamentos Agroextrativistas e Planos de Vida de Povos e Comunidades Tradicionais — devem ser reconhecidos como infraestruturas comunitárias de adaptação climática.
O Estado deve garantir recursos financeiros, tecnológicos e humanos para sua implementação efetiva, valorizando as práticas tradicionais de conservação e promovendo a corresponsabilidade entre comunidades e poder público. Esses planos são expressão concreta do direito à autodeterminação e devem integrar as políticas de mitigação e adaptação, em consonância com os artigos 7º e 8º do Acordo de Paris.
2. Valorização de soluções comunitárias e descentralizadas
Experiências conduzidas por organizações como o MIQCB e o CERSA demonstram que soluções locais, lideradas por mulheres, são mais eficazes e de baixo custo na regeneração ambiental e na geração de renda sustentável. Essas práticas devem orientar a formulação de políticas públicas, inclusive com acesso prioritário a fundos climáticos nacionais e internacionais.
Destacam-se também iniciativas apoiadas pelo Fundo Dema e pelo Fundo Socioambiental da Caixa Econômica Federal, que viabilizaram o plantio de mais de 117 mil mudas em seis municípios da foz amazônica. Tais experiências evidenciam que a governança territorial participativa produz resultados concretos e deve ser reconhecida como componente essencial da transição justa.
3. Redirecionamento do financiamento climático
É urgente revisar os critérios de alocação dos recursos dos bancos de desenvolvimento e dos fundos climáticos nacionais, como o Fundo Clima e o BNDES Fundo Amazônia, de modo a priorizar experiências comunitárias, agroecológicas e de economia solidária, com base em critérios de equidade, participação e transparência.
Os recursos devem ser canalizados diretamente para organizações de base, assegurando compensações vinculadas à preservação da sociobiodiversidade, à permanência nos territórios e à garantia do Consentimento Livre, Prévio e Informado (CLPI).
A concentração de investimentos em projetos corporativos, como o financiamento de R$ 100 milhões da BNDES à Mombak, revela a necessidade de reformar os mecanismos de governança financeira, evitando a monopolização dos benefícios e a criação de “desertos verdes”.
4. Alinhamento fiscal e orçamentário ao direito ao desenvolvimento
O orçamento público e a política fiscal devem ser instrumentos de redistribuição e justiça social. O Estado brasileiro deve rever a gestão da dívida pública — que absorveu cerca de 42,9% do orçamento geral da União em 2024 (aproximadamente R$ 2 trilhões) — e ampliar os recursos destinados à gestão ambiental, que representam apenas 0,3% do total.
Recomenda-se a adoção de reformas fiscais ecológicas que desincentivem atividades de alto impacto ambiental e promovam tributação progressiva sobre grandes fortunas e emissões de carbono, vinculando a arrecadação à proteção ambiental e aos direitos humanos.
Os subsídios e isenções fiscais concedidos a agrotóxicos — que ultrapassam R$ 6,3 bilhões anuais — devem ser progressivamente eliminados e realocados para o financiamento de agroecologia, reflorestamento comunitário e agricultura familiar sustentável.
5. Igualdade de gênero e participação paritária
O direito ao desenvolvimento é indissociável da igualdade de gênero e da participação plena e efetiva das mulheres em todas as fases da tomada de decisão. O Comunicado do W20 (2024), no âmbito do G20, reforça que 80% das vítimas de desastres climáticos são mulheres, recomendando financiamento direto a projetos liderados por mulheres e mecanismos de reparação sensíveis ao gênero.
As instituições financeiras e órgãos ambientais devem adotar políticas de gênero e salvaguardas sociais obrigatórias, assegurando representação paritária de mulheres, povos indígenas e comunidades tradicionais nos conselhos administrativos e de decisão.
No Brasil, instrumentos como o Fundo Clima e o BNDES ainda carecem de políticas específicas de gênero. É imperativo criar diretrizes alinhadas à Estratégia de Gênero 2024–2030 do Banco Mundial, que reconhece a centralidade da equidade na superação da pobreza e na resposta à crise climática.
6. Transparência, controle social e acesso à informação
Os mecanismos de financiamento climático e de desenvolvimento devem assegurar transparência ativa, acesso público a dados financeiros e contratuais e mecanismos de monitoramento participativo, em conformidade com o Acordo de Escazú e com o artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
O controle social deve ser fortalecido por meio da ampliação da atuação das Defensorias Públicas, dos Conselhos de Meio Ambiente e dos observatórios da sociedade civil, garantindo proteção a defensoras e defensores de direitos humanos ambientais.
A criação de um Observatório Nacional sobre Financiamento Climático Justo é recomendada como instrumento de coordenação entre Estado e sociedade civil, assegurando coerência com padrões internacionais de integridade, direitos humanos e sustentabilidade.
7. Responsabilidade internacional e reforma dos mecanismos financeiros globais
Os bancos multilaterais de desenvolvimento e os fundos climáticos internacionais devem adotar critérios vinculantes de diligência devida em direitos humanos, garantindo transparência, monitoramento periódico e consulta significativa às comunidades afetadas.
Relatório conjunto da CEE Bankwatch Network e da FIDH (2024) destaca a urgência de reforçar as salvaguardas socioambientais em todo o ciclo de projetos financiados. A reforma das instituições financeiras internacionais deve priorizar acesso simplificado a recursos, participação igualitária e justiça redistributiva, reconhecendo territórios e comunidades como titulares de direitos e não apenas como beneficiários.
Recomenda-se, ainda, que os mecanismos de financiamento climático da UNFCCC incorporem critérios obrigatórios de equidade de gênero, intergeracionalidade e justiça racial, em linha com os compromissos assumidos no Acordo de Paris e com as obrigações derivadas dos instrumentos internacionais de direitos humanos.
8. Cooperação internacional e solidariedade entre povos
A concretização de uma transição justa requer solidariedade internacional efetiva. Os Estados desenvolvidos devem cumprir suas obrigações de financiamento climático e apoiar os países em desenvolvimento na implementação de políticas centradas em direitos humanos.
Recomenda-se o fortalecimento de parcerias Sul–Sul e triangulares, com foco em transferência de tecnologia, capacitação institucional e fortalecimento de economias locais sustentáveis. Tais iniciativas devem respeitar a soberania dos povos e promover modelos econômicos pós-extrativistas, que assegurem o equilíbrio entre desenvolvimento, dignidade humana e integridade do planeta.


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