A sede do Ministério Público do Estado de São Paulo em Piracicaba foi palco de uma audiência pública, realizada neste mês de outubro, decisiva sobre a mortandade de peixes que devastou o Rio Piracicaba em 2024 — considerada a maior tragédia ambiental da história do rio. O encontro reuniu promotores de justiça, técnicos da CETESB, além de representantes das prefeituras, da Usina São José e dos pescadores atingidos, que dependem das águas do Piracicaba para sobreviver. A reunião teve como objetivo discutir as bases para a celebração de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), instrumento jurídico que poderá garantir a reparação ambiental e econômica para o rio e as comunidades afetadas, bem como promover a recuperação do ecossistema fluvial.
A Usina São José manifestou-se favorável à celebração de um acordo. A empresa declarou plena disposição para o diálogo institucional e interesse em contribuir para a formulação do TAC que viabilize a recuperação do Rio Piracicaba e o ressarcimento aos pescadores. Ao mesmo tempo, ressaltou a necessidade de diretrizes técnicas claras para garantir que o acordo seja equilibrado e baseado em critérios transparentes.
O Ministério Público do Estado de São Paulo, com o apoio da CETESB e do Centro de Apoio à Execução (CAEx), bem como os advogados que representam as comunidades de pescadores atingidas, expuseram os parâmetros técnicos e jurídicos e as diretrizes econômicas, sociais e ambientais destinadas à recuperação dos impactos ecológicos e ao ressarcimento integral dos danos decorrentes da tragédia no Rio Piracicaba.
O Instituto Aimara traz para você um apanhado geral desta audiência pública, oferecendo um panorama claro das negociações e do que está em jogo neste processo. A expectativa agora é de que a Usina São José dê um passo decisivo nas próximas semanas, confirmando formalmente sua adesão às diretrizes apresentadas e avançando na consolidação do acordo.
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Diretrizes ambientais do Ministério Público para a recuperação do Rio Piracicaba |
1. Monitoramento ambiental robusto e de longo prazo
Um dos pontos centrais das diretrizes ministeriais é a criação de um sistema permanente de estudos e monitoramento ambiental do Rio Piracicaba. Segundo o promotor Ivan Castanheiro, o objetivo não é apenas acompanhar os danos atuais, mas também criar uma base científica contínua capaz de sustentar políticas de prevenção, manejo e restauração em toda a bacia.
Entre as medidas propostas estão:
· Eliminação integral dos lançamentos futuros de efluentes provenientes da Usina São José no curso do rio;
· Adoção de um programa técnico-científico de estudos ambientais, que substitua a noção limitada de “monitoramento” por uma abordagem mais ampla de caracterização dos ecossistemas aquáticos;
· Instalação de pontos fixos de amostragem e controle ambiental a montante e a jusante da usina, permitindo comparar áreas impactadas e não impactadas;
· Criação de uma base de dados unificada sobre qualidade da água, sedimentos e fauna aquática, compartilhada entre o Ministério Público, CETESB, municípios e instituições de pesquisa.
O Analista Técnico-Científico Ângelo José Consoni, do GAEMA, explicou que o termo “estudos”, adotado no TAC, amplia o escopo de análise: inclui caracterização química dos sedimentos, avaliação da biota aquática, análises hidrológicas detalhadas e monitoramento de poluentes orgânicos e inorgânicos. Essas informações, segundo o técnico, serão fundamentais para definir o momento adequado para o encerramento do TAC e para avaliar a efetividade das ações corretivas.
2. Estudos hidrológicos e modelagem científica do comportamento do rio
O Ministério Público determinou que a recuperação ambiental do Rio Piracicaba deve se basear em modelos matemáticos e hidrológicos de alta precisão, capazes de representar o comportamento físico, químico e biológico do rio. O gerente da CETESB em Piracicaba, Evandro Gaiate Fischer, destacou que a proposta visa compreender em profundidade como o melaço e outros poluentes se dispersaram, se depositaram ou foram degradados, e como cada trecho do rio responde às variações de fluxo e de qualidade da água.
Para isso, a Usina São José deverá custear e executar:
· Estudo hidrológico detalhado do trecho entre o Ribeirão do Tijuco Preto e a represa de Salto Grande, com atenção especial aos pontos de remanso e corredeiras;
· Modelagem de dispersão de poluentes, considerando o tempo de trânsito da água, sedimentação, oxigenação e demanda bioquímica;
· Análise dos processos de diluição e dispersão subsuperficial, com base em parâmetros físicos (velocidade de fluxo, profundidade, condutividade, transparência, temperatura) e biológicos (oxigenação e composição da fauna aquática);
· Atualização de dados históricos, uma vez que o último estudo hidrológico da CETESB sobre o Piracicaba data da década de 1980.
Esses estudos deverão empregar metodologias avançadas, como batimetria digital, rastreamento de traçadores químicos e sensoriamento remoto, integrando-se a dados do Comitê de Bacias PCJ. A modelagem resultante servirá para orientar futuras medidas de contenção, interceptação e mitigação de poluentes, incluindo protocolos de emergência.
3. Repovoamento ictiológico e restauração ecológica
Outro ponto estruturante das diretrizes é o repovoamento controlado
das espécies de peixes nativas e a restauração da fauna e flora ribeirinhas. O TAC deverá prever
a elaboração de um projeto técnico de repovoamento, a ser submetido à CETESB, com cronograma de
execução, número de espécies, critérios de seleção genética e protocolos de
soltura.
As ações incluirão também:
· Reflorestamento das margens e recomposição da vegetação ciliar, especialmente nas áreas próximas ao bairro Tanquã e à Área de Proteção Ambiental (APA) Tanquã – Rio Piracicaba;
· Adoção de medidas de saneamento para reduzir a eutrofização e o acúmulo de macrófitas, problema crônico que afeta a região;
· Monitoramento da fauna aquática e bentônica, acompanhando o retorno gradual das espécies e os níveis de oxigênio dissolvido;
· Controle de erosão e reforço de taludes, com medidas estruturais preventivas em pontos de fragilidade identificados pelos estudos técnicos.
De acordo com a promotora Alexandra Facciolli Martins, o plano de repovoamento deverá ser gradual, técnico e baseado em evidências, evitando riscos ecológicos e assegurando o equilíbrio entre biodiversidade e sustentabilidade:
“Não se trata de soltar peixes no rio e esperar que a natureza
se resolva. O repovoamento é uma engenharia biológica que precisa ser
planejada, acompanhada e avaliada cientificamente.”
4. Conversão de multas e destinação de recursos ambientais
Outro ponto relevante debatido na audiência foi a possibilidade de
converter multas administrativas aplicadas à Usina São José em ações ambientais
compensatórias. A principal penalidade, de R$ 18 milhões, já está inscrita em dívida
ativa, o que inviabiliza sua conversão. No entanto, novas autuações poderão ser
destinadas a financiar projetos de saneamento, reflorestamento e educação ambiental.
O Ministério Público pretende articular com a CETESB e com o Governo do Estado a criação de um fundo ambiental específico para a bacia do Rio Piracicaba, de forma a assegurar que parte dos recursos arrecadados seja aplicada diretamente nas áreas mais afetadas e nas comunidades ribeirinhas.
5. Planejamento e governança ambiental integrada
As diretrizes ministeriais também preveem a integração das ações de
recuperação do Piracicaba com planos regionais de gestão ambiental, como os programas de
monitoramento das Bacias PCJ, planos de contingência e sistemas de alerta de
poluição. A ideia é que o TAC funcione não apenas como um instrumento
reparatório, mas como modelo de governança ambiental envolvendo:
· Ministério Público, CETESB e prefeituras;
· Universidades e centros de pesquisa regionais;
· Representantes dos pescadores e da sociedade civil.
Além da recuperação ecológica, o TAC deverá deixar um legado institucional, fortalecendo a capacidade de resposta local a incidentes ambientais e criando protocolos permanentes de monitoramento e prevenção.
6. Legado científico e social da reparação
Em seu discurso final, o promotor Ivan Castanheiro definiu o TAC como um “projeto de restauração ecológica e moral”. A proposta, segundo ele,
não se resume a reparar um dano, mas a reconstruir a confiança entre a sociedade e o rio. A tragédia, embora
devastadora, também é uma oportunidade de aprendizado coletivo e de
modernização das práticas ambientais regionais.
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Os pescadores do Piracicaba: entre a dor, a resistência e a busca por justiça |
Piracicaba
O nome da cidade vem do tupi-guarani e significa “lugar onde o peixe pára”. É uma referência às grandiosas quedas do rio Piracicaba que bloqueiam a piracema dos peixes.
(IBGE, 2013)
As atividades dos pescadores no rio sempre foram o compasso da vida nas margens do Piracicaba. Mas desde a mortandade de peixes que devastou o rio em 2024 — a maior tragédia ambiental da história local —, o Piracicaba se calou. O silêncio das águas é hoje o retrato do sofrimento de centenas de famílias que dependiam da pesca artesanal para viver.
Durante a audiência pública realizada em 8 de outubro de 2025, os pescadores e suas
lideranças foram protagonistas de uma narrativa que, há meses, vinha sendo
contada com dor, indignação e esperança. Pela primeira vez, suas vozes ecoaram
oficialmente diante da Usina São José, com a força de quem perdeu o sustento, mas não a dignidade.
1. O colapso de um mode de vida
A representante Thábata Frias Patrezzi, da Escola Náutica de Piracicaba, descreveu o impacto da tragédia como um corte
profundo na história das comunidades ribeirinhas:
“Em
quarenta anos de pesca, nunca vimos algo assim. O rio parou, os peixes sumiram.
É como se a vida tivesse sido arrancada das águas.”
Os pescadores relataram que o evento não apenas destruiu o ecossistema, mas
também desorganizou a economia familiar e a cultura tradicional da pesca artesanal. Muitos
ficaram endividados, venderam embarcações e equipamentos, e alguns abandonaram
a atividade por falta de condições mínimas de sobrevivência.
O pescador Gian Carlos Machado, representante do movimento SOS Rio Piracicaba, deu voz ao sentimento
coletivo de perda:
“Há colegas
que tiveram de escolher entre pagar as contas e alimentar os filhos. O rio que
sempre nos alimentou hoje nos causa dor. As marcas estão nas margens e dentro
da gente.”
2. Uma tragédia sem precedentes
Os advogados Enéas Xavier, Rafael Azevedo e Letícia Seguro, representantes das comunidades de pescadores, apresentaram
durante a audiência um levantamento minucioso realizado ao longo de mais de um ano. Foi identificada uma média
de 145
pescadores diretamente atingidos nos municípios de Piracicaba, São Pedro, Santa Maria da Serra e Anhembi, todos com documentação
profissional, comprovantes de residência e autodeclaração socioeconômica.
Mais do que perda financeira, os pescadores enfrentam a erosão de uma identidade cultural construída em torno do rio. A pesca artesanal é, para essas comunidades, não apenas uma profissão, mas um modo de vida que reúne tradição, pertencimento e saber ambiental. Muitos nasceram às margens do Piracicaba e herdaram das gerações anteriores o conhecimento das águas, das épocas de reprodução, das cheias e vazantes.
Com o desastre, esse vínculo simbólico também foi rompido. As famílias agora
vivem entre o desemprego, o adoecimento emocional e a incerteza sobre o futuro.
Há relatos de problemas de saúde mental, ansiedade e depressão, agravados pela perda de
identidade profissional e pela ausência de políticas públicas de apoio
emergencial.
“O rio está
doente, e nós também”, resumiu uma das lideranças durante a reunião. “O que se
perdeu não foi só o peixe, foi a nossa história.”
3. A luta por reparação
Na audiência, os representantes dos pescadores apresentaram propostas concretas de
reparação ao Ministério Público e à Usina São José, com base em
jurisprudência e parâmetros técnicos. Os advogados enfatizaram que o
levantamento é transparente e documentado, e que os pescadores estão dispostos a colaborar
com as autoridades para garantir uma solução célere e justa.
Segundo Rafael Azevedo, “o TAC é uma oportunidade única de encerrar um ciclo de sofrimento e devolver às famílias o direito de viver do rio, e não apenas à sua margem”.
O Ministério Público reconheceu oficialmente a legitimidade e a urgência das reivindicações apresentadas pelos pescadores, e incluiu o tema das indenizações como eixo prioritário do TAC em construção. O promotor Ivan Carneiro Castanheiro destacou que o acordo busca garantir “reparação integral e efetiva”, abrangendo tanto as perdas econômicas quanto o restabelecimento das condições de pesca.
Para os pescadores, essa audiência representou o primeiro gesto
institucional de reconhecimento de sua dor e de sua importância como guardiões do Piracicaba. A
partir dela, consolidou-se a expectativa de que a justiça ambiental seja
também justiça social — e que a reparação vá além da compensação financeira, alcançando
o renascimento
das águas e das vidas que delas dependem.
4. Memória e resistência
A tragédia que feriu o Rio Piracicaba
também despertou uma nova consciência coletiva. As comunidades ribeirinhas,
antes invisibilizadas, agora se organizam, participam de reuniões, acompanham
estudos técnicos e reivindicam o direito de serem parte ativa do processo de
recuperação.
Essa mobilização é, em si, um ato de resistência — a transformação do luto em luta.
Um memorial deve ser erguido para que as futuras gerações saibam o que aconteceu, para que os pescadores que hoje lutam pela defesa do Piracicaba sejam lembrados e essa tragédia jamais seja esquecida.
O Instituto
Aimara de Defesa e Educação Ambiental segue acompanhando de perto cada etapa das negociações,
reafirmando seu compromisso com os pescadores e com o fortalecimento de um modelo de governança
participativa que une ciência, justiça e comunidade.
Porque, no fundo, a luta dos pescadores
é também a luta de todos que acreditam que um rio pode renascer — e
que a dignidade humana nasce junto com ele.
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O que esperamos da Unisa São José? |
Após meses de dor, espera e diálogo, a audiência pública realizada em 8 de outubro de 2025 consolidou um caminho possível: o da reparação justa e da reconstrução coletiva do Rio Piracicaba. Esse caminho, porém, depende de uma escolha fundamental — a postura que a Usina São José adotará diante da história.
A empresa manifestou disposição para buscar um acordo consensual com o Ministério Público e com os pescadores. Essa abertura é um sinal
importante e deve ser reconhecida. Mas agora é o momento de transformar
palavras em compromissos concretos. O que a sociedade, os pescadores e as
entidades ambientais esperam da Usina é a responsabilidade
institucional, social, ambiental e econômica de assumir seu papel na
recuperação do nosso rio e das nossas famílias.
Todas as diretrizes para a celebração de um acordo já foram apresentadas aos
representantes legais da Usina São José - inclusive, para o ressarcimento dos
pescadores atingidos. Esperamos que a Usina São José aceite integralmente as
obrigações previstas no TAC, reconhecendo que a verdadeira recuperação não se faz apenas com
investimentos financeiros, mas também com transparência,
cooperação e respeito às comunidades atingidas. Que compreenda que
contribuir para o repovoamento das águas, para o reflorestamento das margens e
para a devolução da dignidade aos pescadores não é um custo — é uma
oportunidade de reconstruir sua credibilidade ambiental e histórica junto ao Rio Piracicaba e à
sociedade.
O Instituto Aimara acredita que esta é uma oportunidade rara de reconciliação entre o desenvolvimento e o meio ambiente, entre a produção e a vida, entre o passado e o futuro.
Se a Usina São José escolher o caminho da reparação, seu nome deixará de ser associado à dor da tragédia para ser o agente de um renascimento coletivo.
Corpo editorial:
Enéas Xavier de Oliveira Jr, assessor jurídico.
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