Autoria: Enéas Xavier de Oliveira Jr, advoga
do,
doutorando em direito ambiental internacional pela Université de
Montréal, pesquisador do NETI-USP (Núcleo de Estudos de Tribunais
Internacionais da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo) e
da Clínica de Direitos Humanos e Direito Ambiental da Universidade do
Estado do Amazonas.
Você sabe o que é SLAPP?
A intensificação das mudanças climáticas ampliou o papel dos defensores e defensoras ambientais como atores-chave no monitoramento de políticas públicas, na denúncia de irregularidades e na reivindicação de justiça socioambiental. Entretanto, essa atuação vem sendo frequentemente reprimida por meio de processos judiciais abusivos e intimidação institucional. Entre os mecanismos utilizados para silenciar vozes críticas e deslegitimar denúncias ambientais, destaca-se o fenômeno das SLAPPs (Strategic Lawsuits Against Public Participation), ou ações judiciais estratégicas contra a participação pública. Essas ações não visam propriamente à responsabilização jurídica legítima, mas sim a intimidar, desmobilizar e punir quem exerce o direito de se manifestar, notadamente em contextos relacionados à proteção ambiental e climática.
A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos oferece respostas importantes a esse tipo de perseguição, reafirmando a centralidade da liberdade de expressão e do direito à participação em uma sociedade democrática. Um marco recente é a decisão no caso Baraona Bray vs. Chile (2022), que reconheceu a responsabilidade internacional do Estado chileno pela criminalização indevida de Carlos Baraona Bray, advogado e defensor ambiental, que denunciou em entrevistas públicas a possível participação de um senador chileno na derrubada ilegal de árvores de alerce, espécie protegida e símbolo da biodiversidade local. O uso do direito penal para censurar sua manifestação foi considerado desproporcional pela Corte, que afirmou que a liberdade de expressão sobre temas ambientais é especialmente protegida pela Convenção Americana, sobretudo por envolver assuntos de interesse público global como as mudanças climáticas.
A Corte concluiu que o Estado violou os direitos à liberdade de pensamento e de expressão (art. 13), ao princípio da legalidade (art. 9) e à proteção judicial (art. 25) da Convenção, além de recomendar reformas legislativas e medidas de não repetição. A decisão se alinha aos princípios do Acordo de Escazú e ao entendimento de que a crítica a políticas ambientais ou a denúncias sobre degradação ecológica não pode ser reprimida como “injúria” ou “calúnia”, principalmente quando exercida por defensores ambientais que atuam com base em evidências.
Essa leitura é aprofundada no artigo “Direitos de Participação como Mecanismos de Promoção da Justiça eda Litigância Climática”, que propõe uma abordagem centrada na justiça climática e na proteção procedimental de atores sociais engajados na agenda ambiental. Os autores destacam que o enfrentamento da crise climática exige o fortalecimento dos direitos de acesso — à informação, à justiça e à participação na tomada de decisões — como ferramentas para democratizar a governança climática. As populações mais vulneráveis aos impactos do aquecimento global, como comunidades tradicionais e povos indígenas, dependem da atuação livre de defensoras e defensores ambientais para garantir seus direitos. No entanto, a criminalização desses atores, inclusive por meio de SLAPPs, representa um retrocesso inaceitável e uma ameaça à efetividade dos compromissos assumidos pelo Estado no âmbito do Acordo de Paris e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Esse caso foi objeto de análise no habeas corpus nº 2153734-78.2016.8.26.0000, julgado pela 14ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, que reconheceu a ausência de justa causa e determinou o trancamento do inquérito. A decisão afirmou que o advogado apenas exerceu seu direito de provocar o Estado com base em documentação fotográfica – robusta, inclusive, e que teve suas suspeitas confirmadas por perícia técnica. O Tribunal concluiu que a conduta não era típica e que não se verificava dolo, tampouco qualquer intenção de provocar investigação contra pessoa sabidamente inocente. A decisão reafirma a legitimidade da participação cidadã na defesa do meio ambiente e protege juridicamente o exercício das prerrogativas dos defensores de direitos humanos ambientais e climáticos.
Para ter acesso à decisão, clique no LINK
A advocacia ambiental e climática é instrumento de efetivação dos direitos humanos das presentes e futuras gerações, sendo incompatível com qualquer lógica persecutória e retaliatória, seja pelo Estado ou particulares. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no art. 225 da Constituição Federal, é direito intergeracional e deve ser defendido em conjunto com o art. 5º, inciso XXXIV, alínea “a”, que assegura o direito de petição. A própria Corte Interamericana de Direitos Humanos reconhece o advogado como defensor de direitos ambientais (Caso Baraona Bray vs. Chile, §§ 70-71). Nessa qualidade, deve ser protegido pelo Estado contra quaisquer formas de perseguição ou intimidação, sendo o respeito às prerrogativas da advocacia um requisito fundamental da democracia, do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e da estabilidade climática.
Esse caso brasileiro, assim como o precedente da Corte Interamericana, evidencia a importância de construir mecanismos de proteção aos defensores ambientais e climáticos, que atuam na linha de frente da justiça ecológica. O combate às SLAPPs e a valorização dos direitos de acesso são condições essenciais para que a ação climática seja legítima, equitativa e realmente transformadora.
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