Autor: Enéas Xavier de Oliveira Jr, advogado, doutorando em direito ambiental internacional pela Université de Montréal, pesquisador do NETI-USP (Núcleo de Estudos de Tribunais Internacionais da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo) e da Clínica de Direitos Humanos e Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas.
O texto abaixo foi redigido a partir do Acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n. 1.857.098/MS.
A informação ambiental constitui um instrumento essencial para a consolidação do Estado de Direito Ambiental, atuando como fundamento normativo da democracia participativa ecológica e expressão concreta do princípio da máxima publicidade. Sua centralidade deriva da própria concepção de meio ambiente como bem de interesse público, cuja proteção exige ampla circulação de dados, saberes e diagnósticos socioecológicos. No contexto jurídico brasileiro, o conteúdo, o alcance e as implicações desse direito foram minuciosamente analisados pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 1.857.098/MS[1].
Conforme delineado nesse julgamento paradigmático, a informação ambiental deve ser compreendida em sentido amplo, abrangendo quaisquer dados — escritos, visuais, sonoros, eletrônicos ou em outros suportes — que digam respeito ao meio ambiente, seus elementos, recursos naturais e eventuais riscos ou impactos sobre a saúde humana e os ecossistemas[2]. Essa concepção ampla reflete o conteúdo normativo de diplomas legais como a Lei nº 10.650/2003[3], a Lei nº 12.527/2011 (LAI)[4] e a Lei nº 6.938/1981⁴, os quais, em conjunto, estruturam um regime jurídico orientado pela transparência, responsabilidade e controle social da gestão ambiental.
O direito de acesso à informação ambiental também encontra respaldo em compromissos internacionais, como o Princípio 10 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, que dispõe que “toda pessoa deverá ter acesso adequado à informação sobre o ambiente de que dispõem as autoridades públicas”, e que os Estados devem “colocar a informação à disposição de todos”[5]. Tal diretriz normativa afirma a centralidade da informação como pré-condição à participação pública e à realização de justiça ambiental substantiva.
Inspirada diretamente por esse princípio, a Convenção de Aarhus, firmada em 1998 no âmbito da Comissão Econômica da ONU para a Europa, elevou o direito à informação ambiental à condição de direito humano fundamental[6]. O tratado estabelece obrigações positivas aos Estados Partes, que devem garantir acesso não discriminatório, compreensível e tempestivo à informação ambiental, inclusive por meio de plataformas eletrônicas, além de prever mecanismos de controle judicial e administrativo das negativas injustificadas de acesso⁶. Estudos comparados mostram que o direito europeu evoluiu significativamente ao vincular a informação ambiental à proteção dos direitos fundamentais e à integração entre regulação ambiental e participação pública efetiva[7].
Na América Latina e no Caribe, o Acordo de Escazú, firmado em 2018 sob os auspícios da CEPAL/ONU, representa o primeiro tratado ambiental regional vinculante com foco nos chamados “direitos de acesso” — informação, participação e justiça[8]. O Acordo estabelece que os Estados devem garantir que a informação ambiental seja gerada, organizada e divulgada de forma proativa, sistemática e compreensível, incentivando o uso de tecnologias abertas, dados georreferenciados e descentralização das informações no plano subnacional[9]. Além disso, o texto reconhece a interdependência entre os três pilares da democracia ambiental, articulando-os como mecanismos de proteção dos direitos das gerações presentes e futuras. No contexto latino-americano, o Acordo de Escazú tem sido também apontado como uma ferramenta relevante no enfrentamento da corrupção ambiental, ao garantir maior transparência nos processos de licenciamento, fiscalização e monitoramento de políticas ambientais[10].
O acórdão do STJ no Recurso Especial nº 1.857.098/MS é particularmente relevante por consolidar, em caráter vinculante, a existência de três dimensões complementares da transparência ambiental: ativa, passiva e reativa[11]. A transparência ativa consiste no dever da Administração Pública de divulgar, independentemente de provocação, informações ambientais de interesse coletivo ou geral. Essa obrigação deve ser cumprida preferencialmente por meios eletrônicos e está vinculada à regra constitucional da publicidade, sendo vedado ao Estado omitir-se sem fundamentação expressa, concreta e republicana, sempre sujeita a controle judicial[12].
A transparência passiva, por sua vez, corresponde ao direito do cidadão de solicitar o acesso a informações específicas ainda não divulgadas, sendo a recusa permitida apenas nas hipóteses legalmente previstas de sigilo. O julgamento adverte que práticas administrativas que retardam ou inviabilizam esse acesso configuram simulacros de transparência e violam o núcleo essencial do direito à informação[13].
O STJ também reconheceu expressamente a transparência reativa, segundo a qual, inexistindo determinada informação ambiental sob a guarda do Estado, pode-se exigir que a Administração a produza, desde que a pretensão seja razoável e compatível com os recursos e capacidades institucionais disponíveis. Essa dimensão encontra respaldo direto no art. 9º, XI, da Lei nº 6.938/1981[14], e foi interpretada pela Corte como uma obrigação positiva vinculada à efetivação dos direitos fundamentais ambientais[15].
Essas três dimensões da transparência ambiental foram sistematizadas nas teses vinculantes fixadas pelo STJ no julgamento, que afirmam: (i) o dever de publicação proativa das informações ambientais não sigilosas (transparência ativa); (ii) o direito de qualquer pessoa de requisitar informações específicas (transparência passiva); e (iii) o direito de requerer a produção de informações ambientais inexistentes (transparência reativa)[16]. Complementarmente, estabelece-se a presunção em favor da transparência, cabendo à Administração o ônus de justificar o não fornecimento, sob controle judicial[17].
Além disso, a proteção do direito à informação ambiental exige não apenas normas substantivas, mas também garantias processuais adequadas. A efetividade desse direito depende do acesso a mecanismos judiciais como o mandado de segurança, o habeas data e a ação civil pública, os quais devem ser compreendidos como instrumentos da justiça ambiental e da accountability ecológica[18].
Outro ponto de grande relevo é a crítica ao “simulacro de transparência”, expressão empregada no julgamento para denunciar práticas administrativas que frustram, por meios formais, o exercício efetivo do direito à informação[19]. O fornecimento parcial, tardio ou impreciso de dados configura forma de inefetividade estrutural, incompatível com os princípios republicanos da administração pública[20].
O acórdão também reforça a inversão do ônus da prova em favor da transparência, estabelecendo que cabe ao Estado justificar qualquer recusa ou omissão, e não ao cidadão demonstrar a necessidade ou legitimidade do pedido[21]. Essa inversão está em consonância com a máxima efetividade dos direitos fundamentais e com o princípio da boa-fé administrativa¹⁵.
Do ponto de vista material, o direito à informação ambiental é de natureza difusa e coletiva, o que justifica a sua tutela por qualquer cidadão, associação ou Ministério Público, independentemente de interesse individual determinado. A legitimidade ampla para sua defesa coaduna-se com o modelo de democracia participativa previsto na Constituição de 1988[22].
Importante, ainda, é a valorização dos instrumentos internacionais no campo da informação ambiental, mesmo que não formalmente incorporados ao ordenamento jurídico. O acórdão faz referência expressa à Declaração do Rio, reafirmando a sua autoridade como norma de interpretação conforme a Constituição e de concretização de compromissos assumidos pelo Brasil no plano multilateral[23]. Destacam-se, também, no âmbito do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e decisões proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, como Claudio Reyes v. Chile, Baraona Bray v. Chile e a Opinião Consultiva n. 23/17[24].
Por fim, o julgamento assinala que o conceito de informação ambiental deve ser interpretado de forma evolutiva e dinâmica, considerando os avanços científicos e tecnológicos, os novos riscos socioambientais e as transformações nas formas de participação pública. Isso implica ampliar a noção de informação obrigatoriamente publicizada, incluindo dados sobre algoritmos regulatórios, rastreabilidade climática e justiça ambiental digital.
O propósito maior da informação ambiental reside na viabilização da participação qualificada da sociedade civil nas decisões públicas e na fiscalização democrática das ações estatais. A ausência ou a opacidade informacional gera desmobilização social, restringe o debate público e alimenta desigualdades socioambientais estruturais. Assim, a informação ambiental não é apenas meio de conhecimento: é meio de ação política e jurídica.
Além de seu valor instrumental, a informação ambiental possui natureza de direito fundamental autônomo, comumente associado à quarta dimensão dos direitos fundamentais — ao lado da democracia, do pluralismo e da solidariedade intergeracional⁸. Trata-se de um direito que assegura não apenas liberdade individual, mas também autonomia coletiva, autodeterminação política e acesso à justiça ambiental.
Por fim, a informação ambiental é condição indispensável à prevenção de danos, à responsabilização dos agentes públicos e à construção de políticas públicas sustentáveis. Sua ausência compromete tanto a integridade dos processos democráticos quanto a legitimidade das decisões administrativas e judiciais em matéria ambiental. O reconhecimento da transparência ambiental como um pilar da governança ecológica traduz, portanto, não apenas uma exigência normativa, mas uma aposta civilizatória em direção a uma sociedade mais justa, informada e comprometida com a preservação da vida.
Artigo elaborado com base em decisão do Superior Tribunal de Justiça (REsp
1.857.098/MS) e em tratados internacionais sobre democracia ambiental.
[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.857.098/MS. Relator Ministro Og Fernandes. Brasília, 11 maio 2022.
[2] Idem.
[3] BRASIL. Lei nº 10.650, de 16 de abril de 2003. Dispõe sobre o acesso público aos dados e informações ambientais. Brasília: Câmara dos Deputados, 2003.
[4] BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto na Constituição Federal. Brasília: Câmara dos Deputados, 2011.
[5] ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Report of the United Nations Conference on Environment and Development. 12 August 1992. A/CONF.151/26 (Vol. 1). Annex I – Rio Declaration on Environment and Development.
[6] UNECE – UNITED NATIONS ECONOMIC COMMISSION FOR EUROPE. Convention on Access to Information, Public Participation in Decision-making and Access to Justice in Environmental Matters (Aarhus Convention). Aarhus, 25 jun. 1998. United Nations, Treaty Series, v. 2161, p. 447.
[7] GOMES, Carla Amado; LANCEIRO, Rui Tavares. O acesso à informação ambiental no direito internacional e no direito da União Europeia. Revista Argumentum. V. 19, n. 2, Marília: 2018, p. 583–613
[8] ECONOMIC COMMISSION FOR LATIN AMERICA AND THE CARIBBEAN. Regional Agreement on Access to Information, Public Participation and Justice in Environmental Matters in Latin America and the Caribbean (Escazú Agreement). Escazú, 4 March 2018. United Nations, Treaty Series, v. 98 C.N. 195 2018.
[9] Idem.
[10] TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL – BRASIL. Acordo de Escazú: uma oportunidade de avanços na democracia ambiental e no combate à corrupção no Brasil. São Paulo: TI, 2020.
[11] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.857.098/MS. Relator Ministro Og Fernandes. Brasília, 11 maio 2022, parágrafos 3 e 8.
[12] Idem, parágrafos 5-7.
[13] Idem, parágrafos 4-6.
[14] BRASIL. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente. Diário Oficial da União, Brasília, 2 set. 1981, artigo 9, XI.
[15] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.857.098/MS. Relator Ministro. Og Fernandes. Brasília, 11 maio 2022, parágrafos 8 e 9.
[16] Idem, parágrafo 14, Tese A.
[17] Idem, parágrafo 14, Tese B.
[18] Neste sentido: Corte Interamericana de Direitos Humanos. Medio ambiente y derechos humanos (obligaciones estatales en relación con el medio ambiente en el marco de la protección y garantía de los derechos a la vida y a la integridad personal - interpretación y alcance de los artículos 4.1 y 5.1, en relación con los artículos 1.1 y 2 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos). Opinión Consultiva OC-23/17 de 15 de noviembre de 2017. Serie A No. 23, para. 64.
[19] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.857.098/MS. Relator Ministro Og Fernandes. Brasília, 11 maio 2022, parágrafo 14.
[20] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 31ed rev., ampl. e atual. São Paulo: JusPodivm, 2025, p. 105.
[21] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.857.098/MS. Relator Ministro Og Fernandes. Brasília, 11 maio 2022, para. 14 Tese B.
[22] Neste sentido: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1505923/PR 2014/0338886-7. Segunda Turma. Relator Ministro Herman Benjamin. 21 de maio de 2015. Ver também: XAVIER, Enéas. A Defensoria Pública como Vetor de Participação das Populações Vulneráveis na Ação Climática. Cadernos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, v. 10, n.44. São Paulo: EDEP, 2025, p. 447-475, disponível em: https://www.researchgate.net/publication/390630842_A_DEFENSORIA_PUBLICA_COMO_VETOR_DE_PARTICIPACAO_DAS_POPULACOES_VULNERAVEIS_NA_ACAO_CLIMATICA. KISHI, Sandra Akemi Shimada. XAVIER, Enéas. Direitos de Participação como Mecanismos de Promoção da Justiça e da Litigância Climática. In: CAZETTA, Ubiratan. RAMOS, André de Carvalho (Orgs.). Litigância climática e atuação do MPF. Brasilia: 2025, pp. 312-345. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/390920799_Direitos_de_Participacao_como_Mecanismos_de_Promocao_da_Justica_e_da_Litigancia_Climatica
XAVIER, Enéas. Participação da Sociedade Civil na Tutela dos Interesses Difusos: meio ambiente e justiça. Universidade Metodista de Piracicaba. Dissertação de Mestrado. Piracicaba: 2023. Disponível em: http://dx.doi.org/10.13140/RG.2.2.35295.78241
[23] Princípio 10 da Declaração do Rio se destaca como o primeiro instrumento jurídico internacional que expressamente trata os direitos de acesso em matéria ambiental de forma conjunta, compreendendo o direito de acesso à informação, o direito de participação e o direito de acesso à justiça.
[24] Sobre a matéria, ver: KISHI, Sandra Akemi Shimada. XAVIER, Enéas. Direitos de Participação como Mecanismos de Promoção da Justiça e da Litigância Climática. In: CAZETTA, Ubiratan. RAMOS, André de Carvalho (Orgs.). Litigância climática e atuação do MPF. Brasilia: 2025, pp. 312-345. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/390920799_Direitos_de_Participacao_como_Mecanismos_de_Promocao_da_Justica_e_da_Litigancia_Climatica
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