As mudanças climáticas impõem à
comunidade internacional o desafio da reformulação do arcabouço jurídico
atualmente vigente considerado ineficaz para o seu enfrentamento. Apesar dos
avanços nas últimas décadas, tem-se que o processo de tomada de decisão ainda
se concentra no ultrapassado modelo tradicional do direito internacional que
considera o Estado como único sujeito de direito, e reserva à sociedade civil
papeis secundários. E a crise climática proporciona a reflexão sobre novos
caminhos a se percorrer em busca de soluções. Sabe-se que a melhor forma de se
tratar os desafios ambientais é por meio da participação direta da sociedade
civil no debate político. O presente artigo propõe uma abordagem sobre o quadro
jurídico internacional vigente para o enfrentamento das mudanças climáticas, e apresenta
dentre suas considerações finais a urgência de se modificar o quadro jurídico
para contemplar a sociedade civil no processo de tomada de decisões no debate
climático.
A SOCIEDADE
CIVIL COMO SUJEITO DE DIREITO INTERNACIONAL NAS CONFERÊNCIAS DAS NAÇÕES UNIDAS
SOBRE MUDANÇAS CLIMÁTICAS*
Enéas Xavier de Oliveira Junior, advogado, mestre em
direito pela Universidade Metodista de Piracicaba/Brasil, doutorando pela
Université de Montréal/Canadá
Resumo
As mudanças climáticas impõem à
comunidade internacional o desafio da reformulação do arcabouço jurídico
atualmente vigente considerado ineficaz para o seu enfrentamento. Apesar dos
avanços nas últimas décadas, tem-se que o processo de tomada de decisão ainda
se concentra no ultrapassado modelo tradicional do direito internacional que
considera o Estado como único sujeito de direito, e reserva à sociedade civil
papeis secundários. E a crise climática proporciona a reflexão sobre novos
caminhos a se percorrer em busca de soluções. Sabe-se que a melhor forma de se
tratar os desafios ambientais é por meio da participação direta da sociedade
civil no debate político. O presente artigo propõe uma abordagem sobre o quadro
jurídico internacional vigente para o enfrentamento das mudanças climáticas, e apresenta
dentre suas considerações finais a urgência de se modificar o quadro jurídico
para contemplar a sociedade civil no processo de tomada de decisões no debate
climático.
Palavras-chave: mudanças climáticas; sociedade civil;
participação.
Introdução
O enfrentamento das
mudanças climáticas exige o esforço conjunto e imediato da comunidade
internacional, sendo que as negociações protagonizadas pelos Estados no âmbito
das Nações Unidas são caracterizadas pelo debate polarizado em que
posicionamentos políticos são priorizados em detrimento de compromissos jurídicos
necessários para contornar a crise climática. Neste contexto, o presente
trabalho propõe uma breve análise sobre a participação da sociedade civil no
debate climática.
Debruça-se inicialmente
sobre as constatações científicas das mudanças climáticas e a estrutura
jurídica atualmente vigente no âmbito internacional – especificamente, a
Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (Convenção-Quadro) e
a Conferência das Partes (COP). Em seguida, apresenta-se o caráter político
característico do posicionamento dos Estados como principal obstáculo no
combate das mudanças climáticas. A sociedade civil é tratada sob a perspectiva
de sua participação sem poder direto no processo de tomada de decisões.
As conclusões finais
consideram o quadro jurídico atualmente vigente como falho, ao passo em que se
concentra no protagonismo dos Estados e não contempla a sociedade civil ator
coadjuvante no debate climático.
As
Mudanças Climáticas
O
planeta encontra-se atualmente mergulhado no período antropoceno, caracterizado
por desequilíbrios nos sistemas de interação da Terra em razão de uma pressão
sem precedentes pela utilização de seus recursos naturais para suportar uma
população crescente, uma agricultura para o seu abastecimento e sua matriz
energética essencialmente dependente de combustíveis fósseis, que resulta na
emissão de gases-estufa, modificação da composição da atmosfera, perda de
biodiversidade, derretimento das calotas polares, aumento dos níveis dos
oceanos, aumento da temperatura média no planeta, dentre outras marcas
profundas da intervenção humana.
As mudanças climáticas devem ser compreendidas como um resultado direto da
capacidade humana de alterar o equilíbrio destas interações, a partir da
exploração de recursos naturais.
A
partir do final da década de 1960, o meio ambiente passa a ocupar um espaço de
destaque na política internacional com os contornos atualmente verificados,
diante da crescente preocupação com a capacidade de resiliência do planeta para
sustentar o desenvolvimento da sociedade moderna e a ausência de um quadro
jurídico adequado para o enfrentamento desta situação.
Tem-se testemunhado a ocorrência de fenômenos climáticos extremos no mundo, sem
precedentes na história humana moderna,
e a regulamentação legal surge no âmbito do direito internacional como resposta.
A
Convenção-Quadro introduz o conceito de mudança climática, como aquela “que
possa ser direta ou indiretamente atribuída à atividade humana que altere a
composição da atmosfera mundial e que se some àquela provocada pela
variabilidade climática natural observada ao longo de períodos comparáveis”.
O
último relatório publicado pelo IPCC apresenta dados claros e inequívocos sobre
a ocorrência das mudanças climáticas e a influência humana, a partir do
aprimoramento das técnicas e metodologia aplicada aos estudos de períodos
comparados.
Dentre as principais conclusões, afirma-se inequivocamente a influência
antrópica na alta concentração de gases-estufa na atmosfera, a alta na
temperatura média legal, e futuros cenários de aumento da temperatura média de
acordo com as projeções de políticas públicas a serem adotadas de redução de
emissão de gases-estufa.
Em
recente pesquisa publicada em outubro de 2021, Lynas et al.
analisaram 3000 (três mil) trabalhos científicos aleatoriamente selecionados a
partir de um acervo de 88.125 (oitenta e oito mil cento e vinte e cinco)
artigos datados a partir de 2012, em que as mudanças climáticas são abordadas.
As conclusões asseveram que uma quantidade superior a 99% (noventa e nove por
cento) das pesquisas afirmam o consenso científico da origem antrópica das
mudanças climáticas.
A
Convenção-Quadro e as COPs
A Convenção-Quadro foi
concebida na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, contando com a adesão imediata de 154 países.
O tratado apresenta uma estrutura de disposições fechadas e definitivas de
obrigações estabelecidas no combate às mudanças climáticas. Ao contrário, traz
em seu conteúdo disposições-base para o desenvolvimento de negociações futuras
e sucessivas.
O objetivo da
Convenção-Quadro encontra-se disposto no corpo do próprio tratado, de
“estabilização das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera num
nível que impeça uma interferência antrópica perigosa no sistema climático”.
A responsabilidade da persecução deste objetivo e da concretização da
Convenção-Quadro como um todo recai sobre a COP, que deverá analisar as
obrigações assumidas e, também, negociar novas medidas a serem tomadas na luta
contra as mudanças climáticas.
Desde 1995, ocorrem
reuniões anuais no formato da COP, com a participação de 197 Estados-membros
que procedem em negociações sob diferentes formatos e abordagens desde então,
em que os países se organizam em coalisões, cada qual com características ou
interesses em comum, e as obrigações no combate às mudanças climáticas são determinadas
Trata-se de uma tarefa de difícil desenvolvimento, em que o contexto precisa
ser constantemente revisado. A título de exemplo, as negociações que precederam
a conclusão do Acordo de Paris consideraram uma China economicamente pujante,
em posicionamento político muito diverso daquele onde se encontrava no início
das discussões climáticas nos anos 1990 – anteriormente, dividia as mesmas
preocupações com países mais vulneráveis; atualmente, passa a sofrer pressões
internacionais no mesmo nível que os países desenvolvidos.
O Acordo de Paris
estabelece o compromisso de se “(...) manter o aumento da temperatura média
global bem abaixo de 2°C em relação aos níveis pré-industriais, e envidar
esforços para limitar esse aumento da temperatura a 1,5°C (...)”.
A abordagem proposta de compromisso voluntário para a redução de emissão de
gases-estufa por cada estado-membro, diferentemente da abordagem anteriormente
adotada de imposição obrigatória, permitiu a submissão imediata de NDC por 180
países – comprometimento até então inédito no âmbito da diplomacia climática.
Estas contribuições estão sujeitas serão revistas a cada cinco anos,
atentando-se às disposições da decisão 1/CP.21, decisões tomadas pela COP e os
resultados da avaliação global prevista no artigo 14.
O Posicionamento Político como Obstáculo no Debate
Climático
Decisões tomadas no
âmbito do direito internacional, no sentido de se vincular (ou não) a um
tratado, estão intrinsecamente relacionadas a questões políticas.
E uma das características do debate climático é a condução de natureza política
da matéria, em que países tendem a rever compromissos anteriormente assumidos.
O formato da
Convenção-Quadro que exige negociações contínuas entre os Estados, o que
representa um desafio de difícil persecução, pois, as discussões são
frequentemente polarizadas.
Observa-se que uma COP dificilmente termina sem que se tenha uma manifestação
do Secretário Geral das Nações Unidas em que se lamenta o resultado dos trabalhos,
seja em razão da ausência de vontade política para se avançar em determinadas
matérias,
ou pela perda de oportunidade com decisões postergadas para um próximo encontro,
acompanhadas de advertências veementes de que a ausência de avanços representaria
um “suicídio”.
Esta tem sido a tônica dos encontros, em denúncia há longa data da falta de
vontade política para lidar com a crise climática,
o que conduz à constatação proferida em artigo recentemente publicado pelo
professor Paulo de Bessa Antunes, de que “as COPs se sucedem e pouco produzem
de útil”.
Um vazamento de
documentos às vésperas da realização da COP 26 denunciou o lobby praticado por
alguns países na tentativa de pressionar o corpo de cientistas responsável pela
elaboração dos relatórios do IPCC, para que algumas de suas recomendações
fossem suavizadas ou mesmo retiradas dos trabalhos finais.
Estados cuja economia depende diretamente das atividades petrolíferas,
historicamente, posicionam-se contra a adoção de compromissos vinculantes com
datas e metas para a redução de emissão de gases-estufa.
Os Estados Unidos
denunciaram o Acordo de Paris durante o mandato do então presidente Donald
Trump, para posteriormente retomar se reintegrarem ao tratado com o presidente
seguinte Joe Biden.
O Brasil que já foi grande expoente e liderança política no debate climático
internacional é atualmente recebido com desconfiança durante as negociações, diante
do atual posicionamento da gestão do presidente Jair Bolsonaro de
enfraquecimento das políticas públicas ambientais e dos registros recordes de
desmatamento da Amazônia.
Mesmo o tão celebrado
mecanismo de contribuições nacionalmente determinadas enfrenta dificuldades
para resultar em efetiva solução contra as mudanças climáticas. Às vésperas da
COP 26, há uma preocupante projeção do aumento das emissões de gases-estufa na
ordem de 16% (dezesseis por cento) para 2030, quando comparadas às emissões
registradas em 2010, o que resultaria num aumento de temperatura média do
planeta em 2,7°C até o final do século.
Neste sentido, estudos afirmam uma pífia probabilidade de 5% (cinco por cento)
de se atingir a meta do Acordo de Paris de manutenção da temperatura média
global abaixo de 2°C, quando comparada às medições pré-industriais.
A Sociedade Civil como Sujeito de Direito nas COPs
O Professor Paulo Affonso Leme Machado destaca a
importância histórica da participação da sociedade civil na proteção do meio
ambiente, a partir de associações, organizações e movimentos capazes de ecoar
os problemas sociais, cujas ações representam a socialização da política em
atuação conjunta ao Estado. Neste sentido, o jurista Antonio Augusto
Cançado Trindade
afirma que o reconhecimento da capacidade jurídica do indivíduo no direito
internacional é uma realidade do século XXI, fruto do processo histórico de
humanização do direito internacional.
A sociedade civil é
ator inerente à tomada de decisões políticas internacionais, sendo que, sua
atuação não mais se limita a funções consultivas.
Há uma relação direta entre a eficácia de políticas climáticas e a participação
ativa da sociedade civil em suas formulações, persistindo, todavia,
questionamentos às fronteiras desta participação,
que deve contemplar
o processo de tomada de decisão, em consonância com o princípio 10 da Declaração
do Rio sobre meio ambiente e desenvolvimento. Todavia, o que se observa no debate climático é a
ausência de poder deliberativo da sociedade civil, que permanece restrito aos
Estados enquanto Partes das COPs.
A Convenção-Quadro
contempla a participação de organizações não-governamentais na qualidade de
observadora junto às COPs, desde que seja competente nos assuntos abrangidos, e
ainda submetida à possibilidade de veto de um terço dos países-membros.
De acordo com o site oficial da Convenção-Quadro,
a primeira COP, realizada em 1995, contou com a participação de 163
organizações não governamentais observadoras. Individualmente, a COP 15, realizada
em 2009, contou com a participação de 344 organizações não governamentais
observadoras. Até a COP 23, realizada em 2017, um total de 2133 organizações
não governamentais tomaram parte como observadoras nas negociações climáticas.
Em conjunto com as
COPs, são realizados eventos paralelos (os side events) que ocorrem em
ambiente separado ao processo de negociações entre os Estados-Parte da COP,
geralmente sob o formato de painéis temáticos envolvendo a pluralidade de
atores, tanto da sociedade civil como também de representantes diplomáticos, em
abordagens focadas para possíveis soluções contra as mudanças climáticas. Há
uma percepção dentre os integrantes de eficácia das propostas discutidas e suas
conclusões, face à dificuldade comparada de se obter consenso no debate
diplomático entre representantes governamentais, cujo foco recai sobre
interesses políticos.
Os eventos paralelos às
COPs constituem o fórum de maior destaque da sociedade civil no debate
climático, pois, conta com a participação frequente de integrantes diplomáticos
(principalmente dentre o grupo do G77), que os classificam como valiosa fonte
de informações e subsídios para a condução das negociações.
Observa-se que ao longo de negociações para formulação de conceitos e
estruturas jurídicas a sociedade civil consegue subsidiar os representantes
diplomáticos com dados suficientes para o debate. Todavia, tem-se que os
esforços produzem resultados irrelevantes sobre o posicionamento de
países-chave em matéria de mudanças climáticas, cuja adesão a metas e
comprometimentos correspondem mais a critérios políticos de troca e de barganha
no cenário internacional.
Considerações Finais
As mudanças climáticas
são uma realidade inegável. Há consenso científico quanto a sua ocorrência e sua
origem antrópica. Os tratados internacionais atualmente vigentes são fruto de
um longo debate e esforço conjunto da comunidade internacional no seu enfrentamento.
O atual quadro jurídico
tem-se demonstrado ineficaz contra as mudanças climáticas, ao passo em que confere
aos Estados o protagonismo nos processos de tomada de decisão, enquanto relega
à sociedade civil um papel coadjuvante. O posicionamento político adotado pelos
Estados apresenta-se como principal obstáculo à adoção de medidas suficientes
no combate às mudanças climáticas.
As questões ambientais
devem ser enfrentadas com a participação da sociedade civil. Todavia, no debate
climático, os processos de tomada de decisão contemplam tão somente a
participação direta dos Estados. À sociedade civil reservam-se espaços
paralelos incapazes de determinar o rumo das medidas a serem adotadas pela
comunidade internacional.
A crise climática
persiste, apesar dos esforços empreendidos ao longo das últimas décadas em
busca de soluções. E o cenário de fracasso das negociações em razão da
insistência dos Estados em postergar seus compromissos enseja a reflexão por
novos formatos de debate e quadros jurídicos que viabilizem a participação da
sociedade civil enquanto sujeito de direito internacional. Há de se modificar a
Convenção-Quadro e as Conferências das Partes para contemplar a sociedade civil
no debate climático com capacidade jurídica para tomada de decisões.
Referências Bibliográficas
*O
presente artigo foi publicado no VI Congresso Internacional de Direitos
Humanos de Coimbra. Qualquer reprodução ou citação deverá fazer
referência ao trabalho:
OLIVEIRA JUNIOR, Enéas Xavier de. Sociedade Civil como Sujeito de
Direito Internacional nas Conferências das Nações Unidas sobre Mudanças
Climáticas. In: Moreira, Vital, et al. (Orgs.). Anais de Artigos
Completo, VI Congresso Internacional de Direitos Humanos de Coimbra,
v. 9, 2021, pp. 401-413, disponível em: https://a3ec55aa-1c0f-448d-a555-bf0db2483a45.filesusr.com/ugd/8f3de9_03d72525ba754f49b8a12de1a1c5e0bb.pdf
ANTUNES,
Paulo de Bessa. Uma convenção-quadro, um protocolo, um acordo e 26 COPs. Consultor
Jurídico. 10 de novembro de 2021. Disponível em:
<https://www.conjur.com.br/2021-nov-10/antunes-convencao-quadro-protocolo-acordo-26-cops>.
Acesso em: 14 nov. 2021.