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segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Usina São José deve aderir a acordo sobre a mortandade de peixes no rio Piracicaba

A sede do Ministério Público do Estado de São Paulo em Piracicaba foi palco de uma audiência pública, realizada neste mês de outubro, decisiva sobre a mortandade de peixes que devastou o Rio Piracicaba em 2024 — considerada a maior tragédia ambiental da história do rio. O encontro reuniu promotores de justiça, técnicos da CETESB, além de representantes das prefeituras, da Usina São José e dos pescadores atingidos, que dependem das águas do Piracicaba para sobreviver. A reunião teve como objetivo discutir as bases para a celebração de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), instrumento jurídico que poderá garantir a reparação ambiental e econômica para o rio e as comunidades afetadas, bem como promover a recuperação do ecossistema fluvial.

 

A Usina São José manifestou-se favorável à celebração de um acordo. A empresa declarou plena disposição para o diálogo institucional e interesse em contribuir para a formulação do TAC que viabilize a recuperação do Rio Piracicaba e o ressarcimento aos pescadores. Ao mesmo tempo, ressaltou a necessidade de diretrizes técnicas claras para garantir que o acordo seja equilibrado e baseado em critérios transparentes.

 

O Ministério Público do Estado de São Paulo, com o apoio da CETESB e do Centro de Apoio à Execução (CAEx), bem como os advogados que representam as comunidades de pescadores atingidas, expuseram os parâmetros técnicos e jurídicos e as diretrizes econômicas, sociais e ambientais destinadas à recuperação dos impactos ecológicos e ao ressarcimento integral dos danos decorrentes da tragédia no Rio Piracicaba.

 

O Instituto Aimara traz para você um apanhado geral desta audiência pública, oferecendo um panorama claro das negociações e do que está em jogo neste processo. A expectativa agora é de que a Usina São José dê um passo decisivo nas próximas semanas, confirmando formalmente sua adesão às diretrizes apresentadas e avançando na consolidação do acordo.


 


 

Diretrizes ambientais do Ministério Público para a recuperação do Rio Piracicaba

 

1. Monitoramento ambiental robusto e de longo prazo

 

Um dos pontos centrais das diretrizes ministeriais é a criação de um sistema permanente de estudos e monitoramento ambiental do Rio Piracicaba. Segundo o promotor Ivan Castanheiro, o objetivo não é apenas acompanhar os danos atuais, mas também criar uma base científica contínua capaz de sustentar políticas de prevenção, manejo e restauração em toda a bacia.

Entre as medidas propostas estão:

· Eliminação integral dos lançamentos futuros de efluentes provenientes da Usina São José no curso do rio;

· Adoção de um programa técnico-científico de estudos ambientais, que substitua a noção limitada de “monitoramento” por uma abordagem mais ampla de caracterização dos ecossistemas aquáticos;

· Instalação de pontos fixos de amostragem e controle ambiental a montante e a jusante da usina, permitindo comparar áreas impactadas e não impactadas;

· Criação de uma base de dados unificada sobre qualidade da água, sedimentos e fauna aquática, compartilhada entre o Ministério Público, CETESB, municípios e instituições de pesquisa.

 

O Analista Técnico-Científico Ângelo José Consoni, do GAEMA, explicou que o termo “estudos”, adotado no TAC, amplia o escopo de análise: inclui caracterização química dos sedimentos, avaliação da biota aquática, análises hidrológicas detalhadas e monitoramento de poluentes orgânicos e inorgânicos. Essas informações, segundo o técnico, serão fundamentais para definir o momento adequado para o encerramento do TAC e para avaliar a efetividade das ações corretivas.

 

2. Estudos hidrológicos e modelagem científica do comportamento do rio

 

O Ministério Público determinou que a recuperação ambiental do Rio Piracicaba deve se basear em modelos matemáticos e hidrológicos de alta precisão, capazes de representar o comportamento físico, químico e biológico do rio. O gerente da CETESB em Piracicaba, Evandro Gaiate Fischer, destacou que a proposta visa compreender em profundidade como o melaço e outros poluentes se dispersaram, se depositaram ou foram degradados, e como cada trecho do rio responde às variações de fluxo e de qualidade da água.

 

Para isso, a Usina São José deverá custear e executar:

· Estudo hidrológico detalhado do trecho entre o Ribeirão do Tijuco Preto e a represa de Salto Grande, com atenção especial aos pontos de remanso e corredeiras;

· Modelagem de dispersão de poluentes, considerando o tempo de trânsito da água, sedimentação, oxigenação e demanda bioquímica;

· Análise dos processos de diluição e dispersão subsuperficial, com base em parâmetros físicos (velocidade de fluxo, profundidade, condutividade, transparência, temperatura) e biológicos (oxigenação e composição da fauna aquática);

· Atualização de dados históricos, uma vez que o último estudo hidrológico da CETESB sobre o Piracicaba data da década de 1980.

Esses estudos deverão empregar metodologias avançadas, como batimetria digital, rastreamento de traçadores químicos e sensoriamento remoto, integrando-se a dados do Comitê de Bacias PCJ. A modelagem resultante servirá para orientar futuras medidas de contenção, interceptação e mitigação de poluentes, incluindo protocolos de emergência.

 

3. Repovoamento ictiológico e restauração ecológica


Outro ponto estruturante das diretrizes é o
repovoamento controlado das espécies de peixes nativas e a restauração da fauna e flora ribeirinhas. O TAC deverá prever a elaboração de um projeto técnico de repovoamento, a ser submetido à CETESB, com cronograma de execução, número de espécies, critérios de seleção genética e protocolos de soltura.

As ações incluirão também:

· Reflorestamento das margens e recomposição da vegetação ciliar, especialmente nas áreas próximas ao bairro Tanquã e à Área de Proteção Ambiental (APA) Tanquã – Rio Piracicaba;

· Adoção de medidas de saneamento para reduzir a eutrofização e o acúmulo de macrófitas, problema crônico que afeta a região;

· Monitoramento da fauna aquática e bentônica, acompanhando o retorno gradual das espécies e os níveis de oxigênio dissolvido;

· Controle de erosão e reforço de taludes, com medidas estruturais preventivas em pontos de fragilidade identificados pelos estudos técnicos.

 

De acordo com a promotora Alexandra Facciolli Martins, o plano de repovoamento deverá ser gradual, técnico e baseado em evidências, evitando riscos ecológicos e assegurando o equilíbrio entre biodiversidade e sustentabilidade:


 
“Não se trata de soltar peixes no rio e esperar que a natureza se resolva. O repovoamento é uma engenharia biológica que precisa ser planejada, acompanhada e avaliada cientificamente.”

 

4. Conversão de multas e destinação de recursos ambientais


Outro ponto relevante debatido na audiência foi a
possibilidade de converter multas administrativas aplicadas à Usina São José em ações ambientais compensatórias. A principal penalidade, de R$ 18 milhões, já está inscrita em dívida ativa, o que inviabiliza sua conversão. No entanto, novas autuações poderão ser destinadas a financiar projetos de saneamento, reflorestamento e educação ambiental.

 

O Ministério Público pretende articular com a CETESB e com o Governo do Estado a criação de um fundo ambiental específico para a bacia do Rio Piracicaba, de forma a assegurar que parte dos recursos arrecadados seja aplicada diretamente nas áreas mais afetadas e nas comunidades ribeirinhas.

 

5. Planejamento e governança ambiental integrada


As diretrizes ministeriais também preveem a
integração das ações de recuperação do Piracicaba com planos regionais de gestão ambiental, como os programas de monitoramento das Bacias PCJ, planos de contingência e sistemas de alerta de poluição. A ideia é que o TAC funcione não apenas como um instrumento reparatório, mas como modelo de governança ambiental envolvendo:

· Ministério Público, CETESB e prefeituras;

· Universidades e centros de pesquisa regionais;

· Representantes dos pescadores e da sociedade civil.

 

Além da recuperação ecológica, o TAC deverá deixar um legado institucional, fortalecendo a capacidade de resposta local a incidentes ambientais e criando protocolos permanentes de monitoramento e prevenção.

 

6. Legado científico e social da reparação


Em seu discurso final, o promotor
Ivan Castanheiro definiu o TAC como um “projeto de restauração ecológica e moral”. A proposta, segundo ele, não se resume a reparar um dano, mas a reconstruir a confiança entre a sociedade e o rio. A tragédia, embora devastadora, também é uma oportunidade de aprendizado coletivo e de modernização das práticas ambientais regionais.

 


Os pescadores do Piracicaba: entre a dor, a resistência e a busca por justiça

 

Piracicaba

O nome da cidade vem do tupi-guarani e significa “lugar onde o peixe pára”. É uma referência às grandiosas quedas do rio Piracicaba que bloqueiam a piracema dos peixes.

(IBGE, 2013)

 

As atividades dos pescadores no rio sempre foram o compasso da vida nas margens do Piracicaba. Mas desde a mortandade de peixes que devastou o rio em 2024 — a maior tragédia ambiental da história local —, o Piracicaba se calou. O silêncio das águas é hoje o retrato do sofrimento de centenas de famílias que dependiam da pesca artesanal para viver.


Durante a
audiência pública realizada em 8 de outubro de 2025, os pescadores e suas lideranças foram protagonistas de uma narrativa que, há meses, vinha sendo contada com dor, indignação e esperança. Pela primeira vez, suas vozes ecoaram oficialmente diante da Usina São José, com a força de quem perdeu o sustento, mas não a dignidade.

 

1. O colapso de um mode de vida


A representante
Thábata Frias Patrezzi, da Escola Náutica de Piracicaba, descreveu o impacto da tragédia como um corte profundo na história das comunidades ribeirinhas:


“Em quarenta anos de pesca, nunca vimos algo assim. O rio parou, os peixes sumiram. É como se a vida tivesse sido arrancada das águas.”


Os pescadores relataram que o evento não apenas destruiu o ecossistema, mas também
desorganizou a economia familiar e a cultura tradicional da pesca artesanal. Muitos ficaram endividados, venderam embarcações e equipamentos, e alguns abandonaram a atividade por falta de condições mínimas de sobrevivência.


O pescador
Gian Carlos Machado, representante do movimento SOS Rio Piracicaba, deu voz ao sentimento coletivo de perda:


“Há colegas que tiveram de escolher entre pagar as contas e alimentar os filhos. O rio que sempre nos alimentou hoje nos causa dor. As marcas estão nas margens e dentro da gente.”

  

2. Uma tragédia sem precedentes


Os advogados
Enéas Xavier, Rafael Azevedo e Letícia Seguro, representantes das comunidades de pescadores, apresentaram durante a audiência um levantamento minucioso realizado ao longo de mais de um ano. Foi identificada uma média de 145 pescadores diretamente atingidos nos municípios de Piracicaba, São Pedro, Santa Maria da Serra e Anhembi, todos com documentação profissional, comprovantes de residência e autodeclaração socioeconômica.

 

Mais do que perda financeira, os pescadores enfrentam a erosão de uma identidade cultural construída em torno do rio. A pesca artesanal é, para essas comunidades, não apenas uma profissão, mas um modo de vida que reúne tradição, pertencimento e saber ambiental. Muitos nasceram às margens do Piracicaba e herdaram das gerações anteriores o conhecimento das águas, das épocas de reprodução, das cheias e vazantes.


Com o desastre, esse vínculo simbólico também foi rompido. As famílias agora vivem entre o desemprego, o adoecimento emocional e a incerteza sobre o futuro. Há relatos de
problemas de saúde mental, ansiedade e depressão, agravados pela perda de identidade profissional e pela ausência de políticas públicas de apoio emergencial.


“O rio está doente, e nós também”, resumiu uma das lideranças durante a reunião. “O que se perdeu não foi só o peixe, foi a nossa história.”

  

 

 

3. A luta por reparação


Na audiência, os representantes dos pescadores apresentaram
propostas concretas de reparação ao Ministério Público e à Usina São José, com base em jurisprudência e parâmetros técnicos. Os advogados enfatizaram que o levantamento é transparente e documentado, e que os pescadores estão dispostos a colaborar com as autoridades para garantir uma solução célere e justa.

 

Segundo Rafael Azevedo, “o TAC é uma oportunidade única de encerrar um ciclo de sofrimento e devolver às famílias o direito de viver do rio, e não apenas à sua margem”.

 

O Ministério Público reconheceu oficialmente a legitimidade e a urgência das reivindicações apresentadas pelos pescadores, e incluiu o tema das indenizações como eixo prioritário do TAC em construção. O promotor Ivan Carneiro Castanheiro destacou que o acordo busca garantir “reparação integral e efetiva”, abrangendo tanto as perdas econômicas quanto o restabelecimento das condições de pesca.


Para os pescadores, essa audiência representou o
primeiro gesto institucional de reconhecimento de sua dor e de sua importância como guardiões do Piracicaba. A partir dela, consolidou-se a expectativa de que a justiça ambiental seja também justiça social — e que a reparação vá além da compensação financeira, alcançando o renascimento das águas e das vidas que delas dependem.

  

4. Memória e resistência


 A tragédia que feriu o Rio Piracicaba também despertou uma nova consciência coletiva. As comunidades ribeirinhas, antes invisibilizadas, agora se organizam, participam de reuniões, acompanham estudos técnicos e
reivindicam o direito de serem parte ativa do processo de recuperação.

 

Essa mobilização é, em si, um ato de resistência — a transformação do luto em luta.

 

Um memorial deve ser erguido para que as futuras gerações saibam o que aconteceu, para que os pescadores que hoje lutam pela defesa do Piracicaba sejam lembrados e essa tragédia jamais seja esquecida.


O
Instituto Aimara de Defesa e Educação Ambiental segue acompanhando de perto cada etapa das negociações, reafirmando seu compromisso com os pescadores e com o fortalecimento de um modelo de governança participativa que une ciência, justiça e comunidade.


 Porque, no fundo, a luta dos pescadores é também a luta de todos que acreditam que
um rio pode renascer — e que a dignidade humana nasce junto com ele.

 

 


 

 O que esperamos da Unisa São José?

 

Após meses de dor, espera e diálogo, a audiência pública realizada em 8 de outubro de 2025 consolidou um caminho possível: o da reparação justa e da reconstrução coletiva do Rio Piracicaba. Esse caminho, porém, depende de uma escolha fundamental — a postura que a Usina São José adotará diante da história.


A empresa manifestou disposição para
buscar um acordo consensual com o Ministério Público e com os pescadores. Essa abertura é um sinal importante e deve ser reconhecida. Mas agora é o momento de transformar palavras em compromissos concretos. O que a sociedade, os pescadores e as entidades ambientais esperam da Usina é a responsabilidade institucional, social, ambiental e econômica de assumir seu papel na recuperação do nosso rio e das nossas famílias.


Todas as diretrizes para a celebração de um acordo já foram apresentadas aos representantes legais da Usina São José - inclusive, para o ressarcimento dos pescadores atingidos. Esperamos que a Usina São José
aceite integralmente as obrigações previstas no TAC, reconhecendo que a verdadeira recuperação não se faz apenas com investimentos financeiros, mas também com transparência, cooperação e respeito às comunidades atingidas. Que compreenda que contribuir para o repovoamento das águas, para o reflorestamento das margens e para a devolução da dignidade aos pescadores não é um custo — é uma oportunidade de reconstruir sua credibilidade ambiental e histórica junto ao Rio Piracicaba e à sociedade.

 

O Instituto Aimara acredita que esta é uma oportunidade rara de reconciliação entre o desenvolvimento e o meio ambiente, entre a produção e a vida, entre o passado e o futuro.

Se a Usina São José escolher o caminho da reparação, seu nome deixará de ser associado à dor da tragédia para ser o agente de um renascimento coletivo.

 

 

Corpo editorial:

Enéas Xavier de Oliveira Jr, assessor jurídico.

Todos os direitos reservados à Associação Civil Instituto Aimara de Defesa e Educação Ambiental

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Instituto Aimara e parceiros são mencionados em relatório oficial da ONU sobre igualdade de gênero e direito ao desenvolvimento





O Instituto Aimara de Defesa e Educação Ambiental foi diretamente mencionado no mais recente relatório das Nações Unidas, intitulado “Nexus between Gender Equality and the Right to Development”, elaborado pelo Relator Especial da ONU sobre o Direito ao Desenvolvimento, Surya Deva, e apresentado à 60ª sessão do Conselho de Direitos Humanos. O documento pode ser acessado aqui --> basta CLICAR NESTE LINK


Este reconhecimento reforça a relevância internacional do trabalho do Instituto Aimara na promoção da justiça climática, da igualdade de gênero e dos direitos das mulheres em territórios amazônicos e costeiros. A contribuição enviada pelo Instituto — elaborada em conjunto com parceiros estratégicos que desempenham um papel essencial no cenário nacional de justiça climática — destacou os impactos da transição energética sobre mulheres indígenas, quilombolas, pescadoras e rurais, além de apresentar recomendações concretas para uma transição justa e popular.

 

A participação foi desenvolvida em colaboração com:

  • Universidade Federal do Pará (UFPA)
  • Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares (INEAF/UFPA)
  • ActionAid Brasil
  • Instituto de Filosofia e Ciências Humanas 
  • Universidade Federal da Bahia (UFBA)
  • Defensorias Públicas dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro

 

A contribuição coletiva enfatizou que o modelo atual de transição energética no Brasil tem reproduzido desigualdades estruturais, afetando de forma desproporcional as mulheres de comunidades tradicionais. O documento submetido ao Relator denunciou a ausência de consulta livre, prévia e informada, o avanço de empreendimentos eólicos e solares sem garantias de participação e o agravamento de violações socioambientais — configurando um cenário de colonialismo energético e climático. 

 

O texto propôs que a transição energética seja redesenhada sob uma perspectiva decolonial, descentralizada e descarbonizante, centrada na autodeterminação dos povos e na soberania dos territórios, com base em experiências de agroecologia, energia comunitária e justiça territorial.

 

🌍 A importância do relatório para o direito internacional

 

O relatório “Nexus between Gender Equality and the Right to Development” representa um marco normativo e interpretativo no direito internacional contemporâneo, ao consolidar a relação mutuamente reforçadora entre a igualdade de gênero e o direito ao desenvolvimento.

 

O documento, apresentado ao Conselho de Direitos Humanos, demonstra como a igualdade de gênero para meninas e mulheres conduz à realização do direito ao desenvolvimento, e como a efetivação desse direito, por sua vez, fortalece a igualdade de gênero. Ao fazê-lo, o Relator Especial defende que assegurar a igualdade de gênero contribui diretamente para a construção de um mundo mais inclusivo, pacífico e sustentável.

 

Além disso, o relatório explica como os elementos centrais do direito ao desenvolvimento — a dimensão coletiva, a participação nas decisões, a distribuição justa dos benefícios, a interseccionalidade e a cooperação internacional — devem ser mobilizados como ferramentas jurídicas para alcançar a igualdade substantiva na sociedade.

 


Do ponto de vista jurídico, o relatório tem impacto significativo na formação progressiva do direito internacional:

  • Reforça a indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, integrando igualdade de gênero e desenvolvimento em um mesmo arcabouço normativo;
  • Densifica o conteúdo jurídico do direito ao desenvolvimento, tradicionalmente tratado como direito programático, ao definir obrigações concretas para os Estados;
  • Introduz uma perspectiva feminista e decolonial no campo do desenvolvimento, reconhecendo as desigualdades de gênero como resultado de estruturas econômicas e políticas globais;
  • E fortalece a cooperação internacional como dever jurídico, vinculando financiamento, tecnologia e solidariedade ao combate das desigualdades estruturais.

 

Por ter sido apresentado oficialmente ao Conselho de Direitos Humanos, o relatório passa a servir como referência interpretativa para os órgãos de tratados, agências da ONU e mecanismos internacionais de monitoramento, orientando políticas públicas e decisões futuras sobre igualdade de gênero, transição energética e desenvolvimento sustentável.

 

✳️ Compromisso contínuo

 

A menção ao Instituto Aimara neste relatório histórico é motivo de orgulho coletivo. Ela reconhece o compromisso da sociedade civil brasileira com a defesa dos direitos humanos, da justiça climática e da igualdade de gênero.

 

O Instituto reafirma seu papel como espaço de educação ambiental, pesquisa e advocacia, atuando de forma colaborativa com universidades, defensorias públicas e movimentos sociais. Nosso compromisso é seguir contribuindo para que o direito ao desenvolvimento seja reinterpretado à luz da emergência climática, com base na equidade, na soberania dos povos e na proteção dos bens comuns — princípios que inspiram uma transição verdadeiramente justa, popular e planetária.

 

✳️ Da contribuição submetida


A emergência climática impõe-se como um dos maiores desafios civilizatórios do século XXI, com impactos que ameaçam simultaneamente os direitos humanos, a integridade dos ecossistemas e as bases do desenvolvimento sustentável. No Brasil, o avanço de um modelo econômico baseado na exportação de commodities, na financeirização da natureza e na concentração fundiária tem agravado desigualdades estruturais e ampliado a vulnerabilidade de povos e comunidades tradicionais.


À luz do mandato do Relator Especial das Nações Unidas sobre o direito ao desenvolvimento, a presente contribuição tem por objetivo evidenciar os obstáculos sistêmicos e as práticas de exclusão que comprometem a efetividade desse direito no contexto brasileiro, bem como apresentar recomendações orientadas pelos princípios da justiça climática, da equidade de gênero e da autodeterminação dos povos.


O texto parte do reconhecimento de que o direito ao desenvolvimento não pode ser exercido à margem da crise climática, e que sua concretização depende da transição para um modelo econômico justo, descolonial e centrado nas pessoas e no planeta. A noção de “desenvolvimento centrado no planeta” implica superar o paradigma de crescimento ilimitado e promover políticas públicas orientadas por direitos, transparência, participação e reparação.


Essa abordagem reforça os compromissos assumidos pelos Estados no âmbito da Agenda 2030, do Acordo de Paris e da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), reafirmando que a justiça climática é condição para a realização integral do direito ao desenvolvimento.


Mulheres, Território e Desenvolvimento


O modelo de transição energética adotado no Brasil tem reproduzido padrões históricos de desigualdade e exclusão, afetando de forma desproporcional mulheres de comunidades indígenas, quilombolas, pesqueiras, extrativistas e rurais. Sob o discurso da “economia verde”, grandes empreendimentos eólicos, solares e de mineração têm sido implementados sem consentimento livre, prévio e informado (CLPI), em violação à Convenção n.º 169 da OIT e aos princípios da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.


Essa ausência de diálogo tem resultado em deslocamentos forçados, perda de territórios ancestrais, contaminação ambiental, insegurança alimentar e energética e rompimento de vínculos comunitários. A intensificação da extração de minerais críticos — como o lítio — agrava tais impactos. No Vale do Jequitinhonha (Minas Gerais), comunidades denunciaram violações de direitos humanos associadas à atuação da empresa Sigma Lithium. Apesar das exportações em larga escala, sobretudo para a China, a região permanece marcada por pobreza estrutural e ausência de mecanismos de participação efetiva. Moradores relatam aumento de doenças respiratórias, rachaduras em moradias, isolamento e destruição de laços comunitários. O falecimento de Custódia Ribeiro de Matos Santos, aos 96 anos, tornou-se símbolo da vulnerabilidade imposta às populações locais.


Esse modelo de desenvolvimento, sustentado por licenciamentos ambientais frágeis e pela omissão estatal na garantia do CLPI, transforma territórios em zonas de sacrifício, perpetuando um ciclo de violência e expropriação. Longe de promover justiça, aprofunda as desigualdades de gênero, raça e classe e compromete a autodeterminação dos povos.


No cenário geopolítico atual, o Brasil tem se destacado na liderança da Aliança Global de Biocombustíveis, iniciativa que, embora estratégica em termos energéticos, acentua a precarização do trabalho rural, especialmente entre cortadores de cana expostos a agrotóxicos sob condições análogas à escravidão. A continuidade da exportação de pesticidas proibidos na União Europeia configura uma forma de colonialismo químico, que afeta de maneira desproporcional agricultoras familiares, comunidades negras e povos indígenas. Entre 2000 e 2021, o uso de agrotóxicos quintuplicou no país, com 14 substâncias detectadas inclusive em amostras de chuva.


A assinatura do acordo Mercosul–União Europeia e a intensificação da disputa comercial entre Estados Unidos e China reforçam esse modelo predatório, que prioriza interesses corporativos em detrimento dos direitos humanos e ambientais.


Essas violações foram amplamente denunciadas durante a consulta virtual com o Relator Especial e em eventos internacionais realizados em 2024 e 2025. Bianca Santos Lopes, da Associação de Produtores Assentados Chico Castro Alves (APACC), destacou os impactos do uso massivo de agrotóxicos sobre mulheres e jovens rurais, além da inversão do ônus da prova na certificação da produção familiar. Rosenilde Gregória dos Santos Costa, do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), relatou os efeitos do desmatamento e da pulverização aérea sobre o modo de vida tradicional das quebradeiras, que resistem por meio de iniciativas como o projeto “Floresta Babaçu em Pé”, apoiado pelo Fundo Amazônia. Solange de Oliveira Matos, do Comitê de Energias Renováveis do Semiárido (CERSA), apresentou experiências de 70 famílias agricultoras na Paraíba que, com apoio de fundações do Banco do Brasil e do Banco do Nordeste, desenvolveram projetos agroecológicos e uma padaria solar que abastece programas públicos e mercados locais. Essas iniciativas fortalecem a soberania alimentar e energética e contribuem para a preservação do bioma Caatinga.


No Brasil, tem-se observado uma transação, e não uma transição. A persistente ausência de regularização fundiária aprofunda a vulnerabilidade de comunidades tradicionais — especialmente de mulheres negras e indígenas — ao restringir o acesso a políticas públicas, crédito, assistência técnica e segurança jurídica.


A transição energética justa exige, portanto, uma abordagem descolonial, descentralizada e descarbonizante, baseada na participação ativa das comunidades e no reconhecimento de seus saberes tradicionais. O Acordo de Escazú constitui um marco fundamental nesse processo, ao reconhecer grupos em situação de vulnerabilidade como titulares prioritários de direitos (artigo 2º, alínea e). No entanto, sua efetividade depende não apenas da ratificação — ainda pendente no Brasil e no Peru —, mas também da implementação de medidas concretas, como a regularização fundiária e o fortalecimento institucional.


Assim, recomenda-se:

  • a ratificação imediata do Acordo de Escazú;

  • o reconhecimento da transição energética como processo de reparação histórica;

  • o apoio direto a iniciativas lideradas por mulheres e comunidades locais;

  • a fiscalização rigorosa de contratos energéticos;

  • o fortalecimento das Defensorias Públicas e de mecanismos de acesso à justiça; e

  • a revisão dos modelos de desenvolvimento impostos sem consulta, em conformidade com os princípios de participação, inclusão e reparação.



✳️ Financiamento para uma Transição Justa e Centrada nas Pessoas


Os atuais mecanismos de financiamento climático e de desenvolvimento sustentável permanecem amplamente baseados em instrumentos de mercado, cuja lógica privilegia a rentabilidade financeira em detrimento da justiça socioambiental. No contexto brasileiro, essa dinâmica tem reforçado assimetrias históricas e reproduzido padrões de exclusão que afetam de maneira desproporcional as comunidades tradicionais, os povos indígenas, as mulheres rurais e a juventude camponesa.


Embora iniciativas como créditos de carbono, programas de compensação e certificações ambientais sejam frequentemente apresentadas como soluções inovadoras, diversos estudos, reportagens investigativas e litígios judiciais demonstram que esses instrumentos têm contribuído para a concentração de recursos em grandes corporações, aprofundando práticas de captura regulatória, corrupção e “rent-seeking” — fenômeno entendido como a apropriação privada de benefícios públicos mediante influência política.


Nos biomas Amazônia e Cerrado, observa-se a consolidação de um neocolonialismo climático, no qual projetos de REDD+ e de restauração florestal têm se transformado em mecanismos de expropriação territorial, denominados pelas comunidades locais de “climate grabbing” e protagonizados por chamados “carbon cowboys”. Em vez de fortalecer a resiliência comunitária, essas iniciativas frequentemente geram conflitos socioambientais, insegurança fundiária e dependência econômica.


A distorção torna-se ainda mais evidente no campo do reflorestamento. Projetos financiados com recursos públicos destinados à geração de créditos de carbono — como o da empresa Mombak, beneficiada com R$ 100 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) — têm substituído ecossistemas nativos por monocultivos de espécies exóticas, formando os chamados “desertos verdes”. Essa prática provoca degradação do solo, redução da biodiversidade, pressão sobre recursos hídricos e desequilíbrios ecológicos, além de desconsiderar o papel das populações locais na gestão sustentável dos territórios.


A crise é agravada pela intensificação dos incêndios florestais. Entre 1998 e 2024, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) registrou 5,9 milhões de focos de calor, sendo 278 mil apenas em 2024 — o maior número desde 2010, com metade concentrada na Amazônia. A predominância desses incêndios em áreas de vegetação nativa evidencia os limites de estratégias compensatórias e a urgência de políticas de prevenção integradas e territorializadas.


Relatórios recentes de instituições multilaterais também apontam o caráter desigual da distribuição de crédito rural no Brasil. Segundo o Banco Mundial (2025), 6% dos contratos concentram 44% dos recursos, enquanto os agricultores familiares — que representam 75% dos contratos — acessam apenas 20% do total. No Plano Safra 2024/2025, mais de R$ 400 bilhões foram destinados ao agronegócio, em contraste com apenas R$ 76 bilhões (15%) à agricultura familiar. O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), principal instrumento de apoio a mulheres, jovens, povos indígenas e comunidades tradicionais, enfrenta graves barreiras de acesso. No estado do Pará, por exemplo, 94% dos recursos foram destinados à pecuária, em detrimento de iniciativas agroecológicas e sustentáveis.


Enquanto isso, isenções fiscais concedidas à indústria de agrotóxicos alcançaram R$ 6,3 bilhões em 2024, subsídios atualmente questionados perante o Supremo Tribunal Federal (ADI 5553). Essa política de incentivos transfere recursos públicos a setores responsáveis pela contaminação do solo, da água e do ar, violando princípios constitucionais de precaução, prevenção e justiça intergeracional.


Esses dados evidenciam que as políticas públicas continuam a sustentar um modelo ecocida de desenvolvimento, estruturado na exportação de commodities e na exclusão sistemática das comunidades tradicionais. A omissão estatal quanto aos impactos do agronegócio — inclusive em relatórios oficiais — reflete um silêncio estrutural que perpetua injustiças históricas.


A transição energética e ecológica não pode se apoiar exclusivamente em soluções de mercado. A efetividade de uma transição justa exige o fortalecimento de respostas comunitárias, baseadas em território e fundamentadas nos conhecimentos tradicionais. Iniciativas de agroecologia, nesse sentido, constituem instrumentos de transformação estrutural e de promoção da soberania alimentar, da justiça de gênero e da preservação da biodiversidade.


A agroecologia deve ser compreendida não apenas como método de produção, mas como movimento sociopolítico que integra justiça ambiental, direitos humanos e igualdade racial e de gênero. Programas públicos como o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO 2024–2027) e o Programa ECOFORTE demonstram a viabilidade de políticas públicas baseadas em sustentabilidade, equidade e participação social. Essas iniciativas fortaleceram redes agroecológicas, ampliaram o acesso de mulheres e jovens a recursos produtivos e impulsionaram a aquisição pública sustentável, especialmente no fornecimento de alimentos para escolas e programas sociais.


Apoiar a agroecologia é promover uma transição justa. A justiça climática é indissociável da justiça de gênero, racial, territorial e intergeracional. A emergência climática deve ser compreendida como limite ético e ecológico ao modelo de desenvolvimento, exigindo a superação das práticas de financeirização da natureza e a centralidade de princípios como soberania alimentar, autodeterminação dos povos e direitos territoriais.


Reinterpretar o direito ao desenvolvimento implica romper com o paradigma de acumulação ilimitada e afirmar que o desenvolvimento só é legítimo quando compatível com os direitos humanos e os limites planetários.

A Centralidade da Emergência Climática


A emergência climática constitui uma crise civilizatória sem precedentes, cujos efeitos já transcendem fronteiras geográficas, temporais e institucionais. Seus impactos ameaçam os fundamentos do desenvolvimento humano, agravando desigualdades estruturais e comprometendo a efetividade dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. O aumento das temperaturas médias globais, a perda acelerada da biodiversidade e a intensificação de eventos climáticos extremos revelam a insuficiência dos marcos regulatórios e das respostas institucionais vigentes.


Entre 1995 e 2024, a taxa média de aquecimento global aumentou de 0,24°C para 0,36°C por década, aproximando o planeta de pontos de não retorno ecológico (tipping points). Estudos científicos recentes indicam que o aquecimento acima de 1,5°C poderá desencadear transformações irreversíveis, como o colapso da Floresta Amazônica, o derretimento das calotas polares e a acidificação dos oceanos. No cenário de altas emissões (RCP8.5), o Centro-Oeste brasileiro poderá ultrapassar 2°C de aquecimento até 2030, com consequências particularmente graves para populações em situação de vulnerabilidade social.


No Brasil, o avanço da degradação ambiental é resultado de um projeto histórico de ocupação e exploração territorial consolidado a partir da década de 1970, baseado na expansão do agronegócio e da mineração. Tal modelo — sustentado pela concentração fundiária, pelo desmatamento, pelo uso intensivo de agrotóxicos e pela queima de biomassa — transformou o agronegócio na principal fonte de emissões de gases de efeito estufa (GEE) do país. Em 2024, o Brasil registrou o maior número de incêndios florestais da década, com impactos devastadores sobre ecossistemas e comunidades tradicionais.


Essas práticas configuram um processo contínuo de ecocídio, entendido como a prática de atos ilegais ou irresponsáveis cometidos com a consciência de que há probabilidade substancial de causar danos graves, generalizados ou duradouros ao meio ambiente. Como advertiu a jurista Polly Higgins, “é preciso deter o trem desgovernado da destruição que nós mesmos colocamos em movimento; freá-lo suavemente não será suficiente”. A continuidade desse modelo agrário-extrativista e de exportação de commodities constitui violação direta às obrigações internacionais de direitos humanos, à luz da Convenção Americana, do Acordo de Paris e da Agenda 2030.


Entre 1995 e 2019, o volume global de exportação de soja cresceu de 32 para 154 milhões de toneladas, consolidando o Brasil como maior exportador mundial — especialmente para o mercado chinês. Essa expansão está diretamente associada ao avanço do desmatamento, das queimadas e da contaminação por agrotóxicos em territórios indígenas, quilombolas e camponeses. A transformação da Amazônia e do Cerrado em fronteiras agrícolas globais reflete uma lógica de financeirização da natureza e de subordinação dos bens comuns aos interesses do capital financeiro e comercial internacional.


O Relatório Nexus do IPBES (2024) confirma que a biodiversidade global tem declinado entre 2% e 6% por década, impulsionada por mudanças no uso da terra, pela emergência climática, pela superexploração dos recursos naturais e pela poluição. No caso brasileiro, a degradação é agravada pelo uso massivo de agrotóxicos e pela expansão de monocultivos, que reduzem a diversidade genética e afetam a resiliência dos ecossistemas.


Enquanto, nos países do Norte Global, o setor energético é a principal fonte de emissões, no Brasil 75% das emissões derivam de mudanças no uso da terra (48%) e da agricultura (27%). Esses dados confirmam a natureza estrutural do agronegócio na crise climática nacional e reforçam a necessidade de uma transição de paradigma que integre justiça ambiental, soberania alimentar e proteção de povos e comunidades tradicionais.


A emergência climática não pode ser tratada como pano de fundo das políticas de desenvolvimento: ela deve ser o eixo interpretativo central do direito ao desenvolvimento. Isso significa compreender que nenhum projeto de desenvolvimento é legítimo se não incorporar os limites planetários e as obrigações derivadas do direito internacional dos direitos humanos.


Nesse sentido, é essencial adotar uma visão de “desenvolvimento centrado no planeta”, que articule soberania dos povos, solidariedade internacional e proteção da Terra como condição existencial. Essa abordagem requer o fortalecimento da cooperação multilateral, a ampliação do acesso a tecnologias limpas, o combate às desigualdades históricas e o reconhecimento de que os territórios e as comunidades são sujeitos de direito — e não meros beneficiários de políticas públicas.


Os mecanismos internacionais de direitos humanos, particularmente os Procedimentos Especiais do Conselho de Direitos Humanos e os órgãos de tratados, desempenham papel crucial nesse processo. A atuação independente desses mecanismos tem contribuído para revelar padrões de violação e orientar Estados e instituições financeiras internacionais no cumprimento de suas obrigações de diligência devida. A integração entre os sistemas da ONU, da OEA e do Acordo de Paris é fundamental para assegurar coerência normativa e proteção efetiva diante da emergência climática.


Reconhecer a emergência climática como eixo estruturante do direito ao desenvolvimento é reconhecer que a crise ambiental é também uma crise de direitos humanos e de governança global. Uma transição verdadeiramente justa só será possível mediante o fortalecimento de instituições democráticas, a reparação de injustiças históricas e a valorização dos conhecimentos e práticas de resistência das comunidades locais.


Recomendações


A efetivação do direito ao desenvolvimento em contexto de emergência climática requer ações estruturais, multiescalares e interinstitucionais, que coloquem os direitos humanos e a justiça climática no centro das políticas econômicas, fiscais e ambientais. Com base nas evidências apresentadas e nos testemunhos coletados, as seguintes recomendações são dirigidas ao Estado brasileiro, às instituições multilaterais de financiamento, aos organismos da ONU e aos parceiros internacionais:

 

1. Fortalecimento da gestão comunitária e territorial


Os planos e instrumentos de gestão elaborados por comunidades locais — como Planos de Manejo de Unidades de Conservação, Planos de Utilização de Assentamentos Agroextrativistas e Planos de Vida de Povos e Comunidades Tradicionais — devem ser reconhecidos como infraestruturas comunitárias de adaptação climática.


O Estado deve garantir recursos financeiros, tecnológicos e humanos para sua implementação efetiva, valorizando as práticas tradicionais de conservação e promovendo a corresponsabilidade entre comunidades e poder público. Esses planos são expressão concreta do direito à autodeterminação e devem integrar as políticas de mitigação e adaptação, em consonância com os artigos 7º e 8º do Acordo de Paris.

 

2. Valorização de soluções comunitárias e descentralizadas


Experiências conduzidas por organizações como o MIQCB e o CERSA demonstram que soluções locais, lideradas por mulheres, são mais eficazes e de baixo custo na regeneração ambiental e na geração de renda sustentável. Essas práticas devem orientar a formulação de políticas públicas, inclusive com acesso prioritário a fundos climáticos nacionais e internacionais.


Destacam-se também iniciativas apoiadas pelo Fundo Dema e pelo Fundo Socioambiental da Caixa Econômica Federal, que viabilizaram o plantio de mais de 117 mil mudas em seis municípios da foz amazônica. Tais experiências evidenciam que a governança territorial participativa produz resultados concretos e deve ser reconhecida como componente essencial da transição justa.

 

3. Redirecionamento do financiamento climático


É urgente revisar os critérios de alocação dos recursos dos bancos de desenvolvimento e dos fundos climáticos nacionais, como o Fundo Clima e o BNDES Fundo Amazônia, de modo a priorizar experiências comunitárias, agroecológicas e de economia solidária, com base em critérios de equidade, participação e transparência.


Os recursos devem ser canalizados diretamente para organizações de base, assegurando compensações vinculadas à preservação da sociobiodiversidade, à permanência nos territórios e à garantia do Consentimento Livre, Prévio e Informado (CLPI).


A concentração de investimentos em projetos corporativos, como o financiamento de R$ 100 milhões da BNDES à Mombak, revela a necessidade de reformar os mecanismos de governança financeira, evitando a monopolização dos benefícios e a criação de “desertos verdes”.

 

4. Alinhamento fiscal e orçamentário ao direito ao desenvolvimento


O orçamento público e a política fiscal devem ser instrumentos de redistribuição e justiça social. O Estado brasileiro deve rever a gestão da dívida pública — que absorveu cerca de 42,9% do orçamento geral da União em 2024 (aproximadamente R$ 2 trilhões) — e ampliar os recursos destinados à gestão ambiental, que representam apenas 0,3% do total.


Recomenda-se a adoção de reformas fiscais ecológicas que desincentivem atividades de alto impacto ambiental e promovam tributação progressiva sobre grandes fortunas e emissões de carbono, vinculando a arrecadação à proteção ambiental e aos direitos humanos.


Os subsídios e isenções fiscais concedidos a agrotóxicos — que ultrapassam R$ 6,3 bilhões anuais — devem ser progressivamente eliminados e realocados para o financiamento de agroecologia, reflorestamento comunitário e agricultura familiar sustentável.

 

5. Igualdade de gênero e participação paritária


O direito ao desenvolvimento é indissociável da igualdade de gênero e da participação plena e efetiva das mulheres em todas as fases da tomada de decisão. O Comunicado do W20 (2024), no âmbito do G20, reforça que 80% das vítimas de desastres climáticos são mulheres, recomendando financiamento direto a projetos liderados por mulheres e mecanismos de reparação sensíveis ao gênero.


As instituições financeiras e órgãos ambientais devem adotar políticas de gênero e salvaguardas sociais obrigatórias, assegurando representação paritária de mulheres, povos indígenas e comunidades tradicionais nos conselhos administrativos e de decisão.


No Brasil, instrumentos como o Fundo Clima e o BNDES ainda carecem de políticas específicas de gênero. É imperativo criar diretrizes alinhadas à Estratégia de Gênero 2024–2030 do Banco Mundial, que reconhece a centralidade da equidade na superação da pobreza e na resposta à crise climática.

 

6. Transparência, controle social e acesso à informação


Os mecanismos de financiamento climático e de desenvolvimento devem assegurar transparência ativa, acesso público a dados financeiros e contratuais e mecanismos de monitoramento participativo, em conformidade com o Acordo de Escazú e com o artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.


O controle social deve ser fortalecido por meio da ampliação da atuação das Defensorias Públicas, dos Conselhos de Meio Ambiente e dos observatórios da sociedade civil, garantindo proteção a defensoras e defensores de direitos humanos ambientais.


A criação de um Observatório Nacional sobre Financiamento Climático Justo é recomendada como instrumento de coordenação entre Estado e sociedade civil, assegurando coerência com padrões internacionais de integridade, direitos humanos e sustentabilidade.

 

7. Responsabilidade internacional e reforma dos mecanismos financeiros globais


Os bancos multilaterais de desenvolvimento e os fundos climáticos internacionais devem adotar critérios vinculantes de diligência devida em direitos humanos, garantindo transparência, monitoramento periódico e consulta significativa às comunidades afetadas.


Relatório conjunto da CEE Bankwatch Network e da FIDH (2024) destaca a urgência de reforçar as salvaguardas socioambientais em todo o ciclo de projetos financiados. A reforma das instituições financeiras internacionais deve priorizar acesso simplificado a recursos, participação igualitária e justiça redistributiva, reconhecendo territórios e comunidades como titulares de direitos e não apenas como beneficiários.


Recomenda-se, ainda, que os mecanismos de financiamento climático da UNFCCC incorporem critérios obrigatórios de equidade de gênero, intergeracionalidade e justiça racial, em linha com os compromissos assumidos no Acordo de Paris e com as obrigações derivadas dos instrumentos internacionais de direitos humanos.

 

8. Cooperação internacional e solidariedade entre povos


A concretização de uma transição justa requer solidariedade internacional efetiva. Os Estados desenvolvidos devem cumprir suas obrigações de financiamento climático e apoiar os países em desenvolvimento na implementação de políticas centradas em direitos humanos.


Recomenda-se o fortalecimento de parcerias Sul–Sul e triangulares, com foco em transferência de tecnologia, capacitação institucional e fortalecimento de economias locais sustentáveis. Tais iniciativas devem respeitar a soberania dos povos e promover modelos econômicos pós-extrativistas, que assegurem o equilíbrio entre desenvolvimento, dignidade humana e integridade do planeta.