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sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Democracia ambiental sob ameaça: desafios enfrentados pela sociedade civil no COMDEMA de Piracicaba

por Thiago Assis Brito de Souza, e

Enéas Xavier de Oliveira Jr. 


Nas últimas semanas, o Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente de Piracicaba (COMDEMA) ocupou posição de destaque na cena política e jurídica do município. O motivo foi a apresentação do Projeto de Lei Complementar nº 16/2025, encaminhado pelo Poder Executivo, que busca alterar profundamente a composição e a estrutura diretiva do colegiado. A proposta pretende ampliar de três para dezoito o número de representantes do Executivo no Conselho e retirar da sociedade civil a prerrogativa de eleger a presidência e a vice-presidência, entregando tais cargos diretamente ao governo municipal.

 

Essa iniciativa gerou imediata reação da sociedade civil organizada, de entidades representativas, da Comissão do Meio Ambiente da OAB de Piracicaba, do Ministério Público do Estado de São Paulo e também do próprio COMDEMA. A justificativa oficial da Prefeitura sustenta que a modificação teria como finalidade assegurar a chamada “paridade” entre governo e sociedade civil, argumento que tem sido amplamente contestado por se apoiar em números frágeis e desconsiderar a estrutura histórica de predominância social prevista na Lei Complementar nº 251/2010.

 

O embate ganhou intensidade quando o projeto foi incluído na pauta de votação da Câmara de Vereadores no dia 11 de setembro de 2025. No entanto, após a emissão de uma Recomendação Administrativa do Ministério Público, que apontou riscos de retrocesso democrático e ambiental, o presidente da Câmara, vereador Rerlison Rezende (PSDB), decidiu retirar o PLC da ordem do dia. A sessão da Câmara foi marcada por forte mobilização social, com o plenário lotado – principalmente por assessores e indicados pelo Executivo na tentativa de inviabilizar a participação popular na Casa do Povo. Mesmo representantes da OAB e do COMDEMA enfrentaram dificuldades no acesso à Câmara. A retirada do projeto da pauta expôs a fragilidade política do PLC nº 16/2025 diante da pressão institucional e social, reforçando a importância da democracia participativa e da legitimidade histórica do COMDEMA como espaço de diálogo e fiscalização.

 

O Instituto Aimara destaca-se como um dos principais articuladores da resistência, produzindo fundamentação jurídica qualificada, mobilizando entidades parceiras e defendendo a preservação da autonomia do Conselho frente às tentativas de captura política. Nossa principal preocupação é a defesa da democracia ambiental e dos direitos de participação no COMDEMA, com a manutenção da sociedade piracicabana como protagonista do debate ambiental.

 

Nesse cenário, torna-se indispensável compreender o que é o COMDEMA, sua trajetória, suas funções e competências, bem como analisar os impactos potenciais da aprovação do projeto de lei. Ao mesmo tempo, é fundamental destacar as manifestações das instituições envolvidas — o próprio Conselho, a OAB, o Ministério Público e o Instituto Aimara —, que convergem no sentido de apontar a inconstitucionalidade e o retrocesso representado pela proposta. A disputa em torno do PLC nº 16/2025 não se restringe a uma mudança legislativa específica, mas se insere em um debate mais amplo sobre os limites da intervenção do Executivo na governança ambiental e sobre a necessidade de resguardar a democracia ambiental e climática como garantia fundamental da coletividade.


1. O que é o COMDEMA?

 

O COMDEMA foi criado pela Lei Municipal nº 4.233, de 27 de dezembro de 1996, e consolidado posteriormente na Lei Complementar nº 251, de 12 de abril de 2010, que reúne a legislação ambiental do município. Trata-se de um órgão colegiado de caráter consultivo e deliberativo, integrante do Sistema Municipal de Meio Ambiente, com a função de formular, acompanhar e avaliar políticas ambientais em âmbito local. Desde sua criação, o COMDEMA tem se consolidado como um espaço institucional de diálogo entre o Poder Público e a sociedade civil organizada, conferindo legitimidade às decisões ambientais e fortalecendo a democracia participativa no município.

 

2. Quais são as finalidades e funções do COMDEMA?

 

A principal finalidade do COMDEMA é promover a discussão, análise e proposição de diretrizes das políticas públicas ambientais de Piracicaba. O Conselho atua em diversas áreas, entre as quais se destacam o planejamento urbano e ambiental, o uso e a ocupação do solo, a gestão de resíduos, os recursos hídricos, a arborização urbana, a poluição sonora e visual, bem como o saneamento básico.

Entre suas atribuições, cabe destacar: o estudo e a proposição de políticas ambientais e de recursos naturais; o estabelecimento de normas e padrões de qualidade ambiental; a recepção de denúncias da população e encaminhamento para os órgãos competentes; a proposição de medidas de recuperação de áreas degradadas; a deliberação sobre estudos de impacto ambiental (EIA/RIMA) para licenciamento municipal; a proposição de unidades de conservação municipais; a homologação de acordos que transformem multas ambientais em medidas de recuperação; além da realização de audiências públicas sobre projetos de relevante impacto ambiental. Essas competências reforçam o caráter híbrido do órgão, que exerce tanto funções consultivas, emitindo pareceres e recomendações, quanto deliberativas, com decisões que afetam diretamente o processo de gestão ambiental do município.

 

3. Qual a importância do COMDEMA?

 

A importância do COMDEMA de Piracicaba reside na sua função de controle social e participação democrática. Ao integrar representantes do Poder Público e da sociedade civil, o Conselho garante que diferentes interesses, preocupações e perspectivas estejam presentes na formulação das políticas ambientais. Esse arranjo reforça a transparência e amplia a legitimidade das decisões, além de funcionar como mecanismo de prevenção de danos, já que o COMDEMA delibera sobre empreendimentos e projetos de impacto ambiental antes que estes sejam executados.

Na prática, o Conselho já se manifestou sobre projetos de ocupação do solo, sobre a supressão de árvores em áreas urbanas, sobre propostas legislativas municipais relacionadas à proteção ambiental e sobre iniciativas de valorização da cidadania ambiental, como o Prêmio Destaque Ambiental, que reconhece práticas exemplares de proteção ao meio ambiente desenvolvidas por escolas, empresas e cidadãos do município.

 Imagens de Justiça ambiental sem royalties | DepositPhotos

 

4. Qual é a estrutura e composição do COMDEMA?

 

O COMDEMA é composto atualmente por 21 cadeiras, divididas entre representantes do Poder Público e da sociedade civil.

No âmbito do Poder Público, integram o Conselho: a Prefeitura de Piracicaba, por meio de suas secretarias com interface ambiental (como a Secretaria de Defesa do Meio Ambiente e outras áreas técnicas), além de órgãos estaduais e de fiscalização, como a Polícia Ambiental e a CETESB.

Já a sociedade civil participa por meio de entidades ambientalistas, associações de bairro, representantes de classe profissional, instituições acadêmicas e de pesquisa, além de representantes do setor produtivo. Essa pluralidade assegura uma composição paritária, que impede a concentração de poder em apenas um setor.

A estrutura interna do COMDEMA é organizada em três instâncias: a Plenária, composta por todos os conselheiros, responsável por aprovar pareceres, deliberações e moções; a Diretoria, formada por presidente, vice-presidente e secretário, encarregada da condução administrativa e da representação oficial; e as Câmaras Técnicas e Comissões Especiais, criadas para o aprofundamento de temas específicos e elaboração de pareceres técnicos.

Os conselheiros têm mandato de dois anos, sendo as reuniões do Conselho ordinárias, abertas ao público e realizadas mensalmente, geralmente na segunda segunda-feira de cada mês. Esse formato garante transparência, assegura o direito de voz à população e reforça o papel do COMDEMA como espaço democrático e participativo na governança ambiental local.

 

5. O que é o Projeto de Lei Complementar nº 16/2025

 

Em agosto de 2025, o Prefeito Municipal de Piracicaba encaminhou à Câmara de Vereadores o Projeto de Lei Complementar nº 16/2025, que propõe alterações significativas na Lei Complementar nº 251/2010, responsável por consolidar a legislação ambiental do município. A proposta tem como eixo central a modificação da composição e da estrutura diretiva do COMDEMA, além da revisão de dispositivos sobre o processo de homologação dos conselheiros e exclusão de artigos do texto legal anterior .

Entre as mudanças mais relevantes, o projeto prevê que o Plenário do COMDEMA passe a contar com 18 representantes do Poder Executivo, todos indicados diretamente pelo Prefeito Municipal. Tal medida altera profundamente o equilíbrio vigente, uma vez que o conselho até então possuía forte predominância da sociedade civil. A justificativa apresentada pelo Executivo sustenta que a modificação buscaria garantir a chamada paridade entre governo e sociedade civil, afirmando que, como atualmente há 18 conselheiros da sociedade civil, seria necessário igualar o número de representantes governamentais para assegurar equilíbrio na composição .

Outra alteração importante introduzida pelo PLC 16/2025 diz respeito à Diretoria do COMDEMA. Pela proposta, o Presidente do colegiado deixaria de ser eleito entre os conselheiros da sociedade civil, passando a ser exercido automaticamente pelo Secretário Executivo de Meio Ambiente. O cargo de Vice-Presidente seria destinado a um representante do Poder Público, escolhido por votação secreta entre os conselheiros, e os cargos de Primeiro e Segundo Secretários ficariam reservados a representantes da sociedade civil, também eleitos por escrutínio secreto. Além disso, o projeto prevê que os secretários sejam apoiados por técnicos da Secretaria Executiva de Meio Ambiente para execução dos trabalhos administrativos .

No tocante à formalização da composição, o projeto simplifica o processo de homologação, determinando que a nomeação dos conselheiros seja publicada apenas no Diário Oficial do Município, revogando a exigência anterior de divulgação em jornal de grande circulação local. Também são revogados os §§ 2º e 4º do art. 10 e o art. 42 da Lei Complementar nº 251/2010, dispositivos que tratavam da admissão e exclusão de entidades da sociedade civil no conselho, o que pode reduzir a margem de atuação autônoma do próprio COMDEMA sobre sua composição .

A exposição de motivos do projeto sublinha que a prática de vincular a presidência de conselhos ambientais ao gestor público é adotada em esferas superiores, como o CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente) e o CONSEMA (Conselho Estadual de Meio Ambiente), e que a medida reforçaria a institucionalidade. Ainda assim, a proposta tem suscitado preocupações no âmbito da sociedade civil organizada, pois pode resultar em maior controle do Executivo sobre o conselho, reduzindo a independência de suas deliberações e enfraquecendo a tradição de protagonismo social que marcou a trajetória do COMDEMA de Piracicaba.

Em síntese, o PLC nº 16/2025 se apresenta como um ponto de inflexão na história do Conselho: de um lado, o Executivo municipal sustenta que promove a paridade e a eficiência administrativa; de outro, críticos apontam riscos de centralização e esvaziamento da participação democrática no campo da governança ambiental.

 

6. O que o COMDEMA diz sobre o PLC nº 16/2025?

 

No dia 29 de agosto de 2025, o Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente de Piracicaba – COMDEMA, no exercício de suas atribuições legais e regimentais, apresentou manifestação contrária ao Projeto de Lei Complementar nº 16/2025, que visa alterar a Lei Complementar nº 251/2010, reguladora da composição e funcionamento do colegiado. O posicionamento foi subscrito por seu presidente, Odair Geraldo Penha Moral, e fundamenta-se em aspectos jurídicos, democráticos e constitucionais.

O primeiro ponto destacado pelo Conselho diz respeito à equivocada concepção de paridade defendida pela proposta. O Executivo argumenta que o COMDEMA deveria ser paritário, com 18 representantes da sociedade civil e 18 do governo. Contudo, conforme a legislação vigente, a composição total da sociedade civil corresponde a 16 cadeiras específicas (distribuídas entre entidades de defesa ambiental, associações de moradores, universidades, sindicatos, setor produtivo e entidades culturais e patrimoniais). Assim, o número utilizado na justificativa oficial carece de clareza e consistência, o que compromete a legitimidade da proposta.

Outro fundamento central é que a paridade numérica não equivale à equidade democrática. O Poder Público, por dispor de estrutura técnica e profissional, já se encontra em situação de vantagem para ocupar e influenciar colegiados, sobretudo porque suas representações são remuneradas e exercidas em horário de expediente. Assim, igualar numericamente os representantes não garante equilíbrio real, mas aprofunda o desequilíbrio de condições entre Estado e sociedade civil. Além disso, a tentativa de atribuir automaticamente a presidência do COMDEMA ao Secretário Executivo de Meio Ambiente contraria o processo eleitoral anteriormente validado pelo próprio secretário, que participou e anuiu com a eleição da mesa diretora. Essa medida, portanto, afronta a alternância democrática e enfraquece a representatividade plural do colegiado.

A manifestação também enfatiza a violação de parâmetros normativos e constitucionais. Cita-se a 2ª Conferência Nacional das Cidades, que fixou diretriz de composição dos conselhos em 40% de representantes do Poder Público e 60% da sociedade civil. O PLC nº 16/2025 ignora essa proporção, além de revogar dispositivos da Lei Complementar nº 251/2010 que tratavam da exclusão de entidades e pessoas participantes, ampliando o poder discricionário do Executivo e fragilizando a independência do Conselho. Da mesma forma, a revogação do art. 42 da lei municipal é considerada um retrocesso institucional, sem motivação clara e objetiva, em desacordo com o art. 225 da Constituição Federal e com o princípio da vedação ao retrocesso ambiental, já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, notadamente no voto do Min. Celso de Mello na ADI 3540/DF.

O COMDEMA também alerta que a alteração pode inviabilizar o licenciamento ambiental em âmbito municipal. A Deliberação Normativa nº 01/2024 do CONSEMA exige que conselhos municipais sejam de caráter “normativo e deliberativo”. Se a presidência e a vice-presidência forem concentradas no Executivo — justamente o setor interessado e fiscalizado nos processos de licenciamento —, restará comprometida a lisura e a independência da fiscalização ambiental.

Por fim, a manifestação recorda a trajetória histórica do COMDEMA, que há quase três décadas atua na defesa do meio ambiente em Piracicaba. O colegiado já foi reconhecido com nota máxima no programa Município VerdeAzul e recebeu o Prêmio Chico Mendes da Câmara Municipal em 2025, exemplos de sua relevância como instrumento de controle social. A aprovação do PLC nº 16/2025, segundo o Conselho, transformaria um espaço democrático e deliberativo em um órgão meramente consultivo ou decorativo, esvaziando sua função constitucional.

Em conclusão, o COMDEMA sustenta que a proposta representa um retrocesso democrático e socioambiental, afronta o art. 225 da Constituição Federal, o art. 193 da Constituição Estadual de São Paulo e a jurisprudência do STF (ADPF 747/2020 e ADI 6357/2020), e, por isso, deve ser integralmente rejeitada.

 

7. O que a Comissão do Meio Ambiente da OAB Piracicaba diz sobre o PLC nº 16/2025?

 

A Comissão de Meio Ambiente e Direito Urbanístico da 8ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil em Piracicaba apresentou, em 11 de setembro de 2025, manifestação formal sobre o Projeto de Lei Complementar nº 16/2025, que altera a composição e a estrutura do COMDEMA. A análise realizada pela entidade destaca, de forma contundente, os riscos institucionais, jurídicos e democráticos que decorrem da aprovação da proposta.

O primeiro eixo de crítica refere-se à concentração excessiva de poder no Executivo municipal. Segundo a Comissão de Meio Ambiente da OAB, a estrutura desenhada pelo PLC nº 16/2025 resultaria em um desequilíbrio grave na governança ambiental local, na medida em que transfere a presidência e a vice-presidência do Conselho para cargos indicados diretamente pelo Prefeito. Essa mudança retira da sociedade civil a prerrogativa de participar de forma paritária e efetiva das instâncias de direção do colegiado. Na avaliação da Comissão, essa centralização viola princípios constitucionais e ambientais fundamentais, como o Princípio da Participação, que garante voz ativa à sociedade civil nos processos de decisão, e o Princípio da Informação e da Publicidade, que exigem transparência e pluralidade nos atos de gestão ambiental. Soma-se a isso a violação ao Princípio da Não Regressão Ambiental, que impede a supressão de níveis de proteção já conquistados ao longo dos anos.

O segundo aspecto destacado pela Comissão de Meio Ambiente da OAB é a restrição objetiva da participação social no âmbito do COMDEMA. A Comissão ressalta que o Conselho, ao longo de mais de três décadas, consolidou-se como um espaço deliberativo e consultivo, que representa a sociedade civil e contribui ativamente para a formulação das políticas públicas ambientais do município. Ao retirar a possibilidade de eleição da presidência e da vice-presidência pelos próprios conselheiros, o PLC reduz a autonomia do colegiado e transforma-o em um órgão vulnerável à vontade do Executivo. A consequência prática dessa alteração é a diminuição do pluralismo de pautas: segundo a OAB, as questões levadas à deliberação tenderão a refletir prioritariamente os interesses e prioridades do Prefeito e de sua equipe, deixando em segundo plano as demandas históricas da sociedade civil organizada em defesa do meio ambiente .

Um terceiro fundamento de mérito diz respeito à incompatibilidade do PLC com diretrizes nacionais sobre participação social em conselhos ambientais. A Comissão recorda que a 2ª Conferência Nacional das Cidades estabeleceu, como parâmetro, a composição de 60% de representantes da sociedade civil e 40% de representantes do Poder Público nos conselhos ambientais. Essa regra busca assegurar a efetividade do controle social, considerando as limitações estruturais que a sociedade civil enfrenta em comparação com o Estado. Ao impor uma suposta “paridade” entre Executivo e sociedade civil, o projeto desvirtua esse equilíbrio recomendado em âmbito nacional e amplia o poder discricionário do Prefeito, rompendo com padrões democráticos de governança ambiental e administrativa.

A análise da Comissão também enfatiza o retrocesso democrático e socioambiental representado pela proposta. A entidade ressalta que o COMDEMA, em mais de trinta anos de existência, foi construído como um espaço democrático, plural e de defesa da coletividade e da natureza. O colegiado tem histórico de atuação reconhecida, com a elaboração de pareceres técnicos relevantes e a fiscalização de ações do Poder Público e do setor privado, sendo peça central da política ambiental piracicabana. O PLC nº 16/2025, ao fragilizar a autonomia do Conselho, compromete essa trajetória e ameaça transformar o COMDEMA em mero órgão decorativo, esvaziando seu caráter deliberativo e reduzindo a participação popular em um campo sensível, que envolve o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado.

Por fim, a Comissão fundamenta sua rejeição ao projeto na proteção constitucional do meio ambiente. O parecer invoca expressamente o artigo 225 da Constituição Federal, que garante a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Qualquer medida legislativa que implique redução injustificada dos mecanismos de proteção ambiental, como a retirada de autonomia do COMDEMA, deve ser considerada inconstitucional. A Comissão, assim, manifesta-se claramente contrária à aprovação do PLC nº 16/2025, afirmando que ele representa ameaça direta ao texto constitucional, além de comprometer a continuidade de um modelo de gestão ambiental baseado em democracia participativa e controle social.

Em síntese, a análise de mérito da OAB Piracicaba conclui que o PLC nº 16/2025 fere princípios jurídicos fundamentais, afronta diretrizes nacionais de participação social, promove retrocesso democrático e ambiental, e viola a Constituição Federal. Por esses motivos, a entidade manifesta-se de forma inequívoca pela rejeição da proposta e pela preservação do modelo democrático e participativo que caracteriza historicamente o COMDEMA.

 

8. O que Ministério Público diz sobre o PLC nº 16/2025?

 

A manifestação do Ministério Público do Estado de São Paulo, por meio do GAEMA (Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente – Núcleo PCJ-Piracicaba) e da Promotoria de Justiça de Meio Ambiente de Piracicaba, sobre o PLC nº 16/2025, é bastante contundente.

O Ministério Público entende que o projeto representa um retrocesso democrático e socioambiental, centralizando indevidamente as decisões ambientais no Poder Executivo municipal e fragilizando a independência do COMDEMA. A crítica se fundamenta em diferentes pontos.

Em primeiro lugar, destaca-se que a paridade não pode ser reduzida ao mero número de cadeiras entre sociedade civil e Poder Público. A autonomia da presidência e da vice-presidência é essencial para assegurar efetiva influência da sociedade civil na pauta e na condução dos trabalhos. A imposição automática da presidência ao Executivo, segundo o MP, desvirtua a representatividade do colegiado e gera um conflito de interesses, pois coloca o ente que licencia e fiscaliza como dirigente do órgão que deveria exercer controle social sobre suas próprias ações.

Em segundo lugar, o MP aponta que o projeto desrespeita diretrizes nacionais de participação social, em especial a Resolução da 2ª Conferência Nacional das Cidades (CONCIDADES), que recomenda a composição de 60% de representantes da sociedade civil e 40% do Poder Público nos conselhos ambientais. O PLC nº 16/2025 amplia a participação do Executivo, invertendo essa proporção e comprometendo a pluralidade democrática.

Outro ponto enfatizado é que a revogação de dispositivos da Lei Complementar nº 251/2010, como o §4º do art. 10 e o art. 42, aumenta o poder discricionário do Executivo, reduz a transparência e fragiliza o controle social sobre áreas estratégicas, incluindo a gestão de resíduos sólidos e a limpeza pública. Essa supressão de garantias procedimentais é considerada um retrocesso incompatível com o art. 225 da Constituição Federal e com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que consolidou a vedação ao retrocesso ambiental.

O MP também alerta que a Deliberação Normativa nº 01/2024 do CONSEMA exige que os conselhos municipais de meio ambiente mantenham caráter normativo e deliberativo como condição para que os municípios possam realizar licenciamento ambiental. A concentração de poder no Executivo fragilizaria esse requisito, colocando em risco a legalidade e a validade dos licenciamentos municipais.

Por fim, a recomendação sublinha que o COMDEMA tem uma trajetória de quase três décadas de relevância, legitimada por reconhecimentos institucionais como a nota máxima no programa Município VerdeAzul e o Prêmio Chico Mendes concedido pela própria Câmara de Vereadores em 2025. O esvaziamento do Conselho significaria desprezar essa história e comprometer a governança ambiental do município.

Em conclusão, o Ministério Público considera que o PLC nº 16/2025 é inconstitucional e ilegal em seu mérito, por violar os princípios da participação social, da publicidade, da prevenção, da não regressão e da democracia participativa. Recomenda, portanto, que o projeto seja retirado, e que qualquer futura alteração da composição ou atribuições do COMDEMA seja previamente submetida ao próprio Conselho e discutida em audiência pública ampla, garantindo transparência, publicidade e participação popular efetiva.

 

9. O que o Instituto Aimara diz sobre o PLC nº 16/2025?

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O Instituto Aimara de Defesa e Educação Ambiental tem posição contrária ao PLC nº 16/2025 e às alterações propostas na Lei Complementar nº 251/2010. O Instituto sustenta que o projeto viola princípios constitucionais, infraconstitucionais e compromissos internacionais do Brasil, com argumentos organizados em diferentes eixos.

·      - Quebra da paridade e esvaziamento da democracia ambiental

O Instituto Aimara destaca que a atual Lei Complementar nº 251/2010 assegura predominância da sociedade civil no COMDEMA, com 16 cadeiras distribuídas entre entidades ambientalistas, associações de moradores, universidades, sindicatos, setor produtivo e entidades culturais, enquanto o Poder Executivo conta com apenas 3 representantes. O PLC nº 16/2025 amplia os assentos do Executivo para 18, superando os da sociedade civil e invertendo o arranjo original. Esse redesenho é classificado como uma quebra da paridade, que transforma a participação social em “aparência democrática”, um simulacro de participação que compromete o núcleo da democracia participativa .

·      - Presidência e vice-presidência controladas pelo Executivo

Outro ponto central é a alteração da diretoria do COMDEMA. Pela lei atual, presidente, vice-presidente e secretário são eleitos entre os representantes da sociedade civil. O projeto, contudo, transfere automaticamente a presidência ao Secretário Executivo de Meio Ambiente e reserva a vice-presidência também ao Poder Público, deixando à sociedade civil apenas cargos secundários de secretaria. Na análise do Instituto, isso elimina o protagonismo da sociedade civil na condução do conselho, subordina o colegiado ao Executivo e compromete sua autonomia institucional .

·      - Revogação de dispositivos que asseguravam pluralidade e renovação

O Instituto também aponta que o PLC revoga o §2º e o §4º do art. 10 da Lei Complementar nº 251/2010, que permitiam a admissão de novas entidades da sociedade civil e a exclusão de membros pela própria plenária do Conselho. Além disso, extingue o art. 42, que criava o Conselho de Controle Social do Serviço de Limpeza Urbana. Essas mudanças, no entendimento do Instituto, representam restrição da pluralidade, enfraquecimento do controle social e perda de instrumentos de fiscalização popular em áreas críticas como a gestão de resíduos sólidos .

·      - Violação a direitos fundamentais e compromissos internacionais

A posição do Instituto ressalta que a supressão da participação social fere diretamente o art. 225 da Constituição Federal, que atribui ao Estado e à coletividade o dever de proteger o meio ambiente. Argumenta ainda que a alteração afronta a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal (ADPF 623 e ADPF 651), que reconheceu a participação social em conselhos ambientais como parte essencial da democracia participativa, e desrespeita a Opinião Consultiva nº 32/2025 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que consagrou os direitos de acesso à informação, participação e justiça como núcleo da proteção ambiental e climática .

·      - Democracia ambiental e climática como cláusula de não retrocesso

O Instituto Aimara enraíza sua análise na noção de democracia ambiental e climática, vinculada ao art. 225 da Constituição e à jurisprudência interamericana. Para a entidade, os conselhos gestores ambientais são a expressão máxima da democracia participativa, pois permitem diálogo plural, inclusivo e vinculante. Retirar ou enfraquecer esse espaço significa um retrocesso socioambiental vedado pelo direito constitucional e internacional, violando o princípio da não regressão ambiental e afetando a legitimidade das políticas públicas locais.

Em conclusão, o Instituto Aimara considera o PLC nº 16/2025 inconstitucional e ilegítimo, por romper com a paridade, retirar da sociedade civil a condução do conselho, restringir a pluralidade de sua composição e afrontar tanto a Constituição quanto compromissos internacionais. A entidade sustenta que a proposta representa um grave retrocesso democrático e socioambiental, capaz de esvaziar a democracia participativa e enfraquecer a governança climática e ambiental no município de Piracicaba.

 

10. A inclusão e retirada do PLC nº 16/2025 na pauta da Câmara de Vereadores

 

No dia 11 de setembro de 2025, o Projeto de Lei Complementar nº 16/2025, que pretendia alterar a composição e a direção do COMDEMA em Piracicaba, chegou a ser incluído na pauta de votação da Câmara Municipal. No entanto, poucas horas antes da votação, o Ministério Público do Estado de São Paulo expediu uma Recomendação Administrativa dirigida à Câmara e ao Prefeito, sustentando que a tramitação do projeto configurava risco de retrocesso democrático e ambiental. O documento alertava que o PLC concentrava poder no Executivo, reduzia a representatividade da sociedade civil e afrontava princípios constitucionais como os da participação popular, publicidade, transparência e vedação ao retrocesso ambiental. Além disso, os promotores assinalaram que a vinculação automática da presidência do COMDEMA ao Executivo criava um conflito de interesses, uma vez que o mesmo ente responsável por licenciar e fiscalizar atividades ambientais passaria a dirigir o órgão colegiado fiscalizador.

 

Diante da recomendação, o presidente da Câmara, vereador Rerlison Rezende (PSDB), decidiu retirar o PLC nº 16/2025 da pauta da sessão extraordinária. A decisão foi anunciada no início da noite e acompanhada por forte mobilização popular, com o plenário cheio de cidadãos preocupados com os rumos da política ambiental do município. Em nota oficial, a Câmara confirmou que acataria integralmente a recomendação do Ministério Público e que a votação do projeto ficaria suspensa até que fosse realizada audiência pública específica, com ampla divulgação, participação das entidades cadastradas, universidades e especialistas da área, além do registro e publicação das manifestações colhidas.

 

Assim, o episódio marcou um ponto de inflexão no processo legislativo, evidenciando a força da intervenção institucional do Ministério Público e a mobilização social em torno da defesa da democracia ambiental. A retirada do PLC da pauta revelou, ao mesmo tempo, a fragilidade política do projeto diante da pressão de órgãos de controle e da sociedade civil, e a necessidade de que alterações na governança ambiental municipal sejam precedidas de diálogo público qualificado e fundamentado.


segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Na Linha de Frente do Ambientalismo: a luta dos pescadores por justiça ambiental no Rio Piracicaba

por Thiago Assis Brito de Souza, Jurandir Silvestre e Danuta Hilaria Rodrigues  

APqC divulga nota sobre mortandade de peixes no Rio Piracicaba – O Presente  Rural

Um ano após a maior mortandade de peixes da história do rio, as famílias de 150 pescadores seguem sem renda e sem reparação. O Instituto Aimara atua na defesa dos atingidos.

Julho de 2024 marcou para sempre a história do Rio Piracicaba. O que antes era um curso d’água conhecido por sua importância ecológica e pelo sustento que garantia a centenas de famílias de pescadores transformou-se, de repente, em cenário de destruição. Estima-se que aproximadamente 100 toneladas de peixes tenham sido encontradas mortas ao longo do leito e das margens, em um desastre provocado pelo despejo de melaço e efluentes industriais da Usina São José S/A Açúcar e Álcool, conforme atribuem as investigações e autuações conduzidas pela CETESB e pelo Ministério Público.

Entre as espécies mais afetadas estavam curimbatás, dourados, piaus, traíras e lambaris — essenciais para o equilíbrio ecológico e para a subsistência das comunidades pesqueiras locais. O impacto foi devastador: aves, répteis e mamíferos que dependiam desses peixes começam a desaparecer da região, e populações já ameaçadas tiveram suas chances de sobrevivência ainda mais reduzidas.

A poluição afetou diretamente a vida de pescadores artesanais, ribeirinhos e comunidades tradicionais, que perderam sua principal fonte de renda, enfrentam insegurança alimentar e viram romper-se laços culturais construídos ao longo de gerações. Algumas famílias foram obrigadas a deixar suas casas, levando consigo apenas a lembrança do que foi a vida junto ao rio. Muitos adoeceram, física e emocionalmente, vivendo hoje à base de medicamentos.

 

A Carta Aberta: reivindicações gerais e visão de futuro

 

Em julho de 2025, por ocasião do aniversário de um ano da tragédia, o Instituto Aimara e a SOS Rio Piracicaba publicaram uma carta aberta listando reivindicações gerais e estruturais dos pescadores. O documento defende:

  • Restituição ecológica plena, com repovoamento por espécies nativas, recuperação da qualidade da água e das áreas degradadas, e retomada segura da pesca artesanal;
  • Reabilitação social e econômica, com programas de apoio psicossocial, capacitação e alternativas de geração de renda;
  • Compensação justa e proporcional, considerando os prejuízos econômicos, a redução da renda e o sofrimento moral imposto;
  • Reconhecimento oficial e retratação pública, incluindo pedidos de desculpas, cerimônias de memória ambiental e ações educativas;
  • Medidas estruturais de prevenção, como reforço da fiscalização, monitoramento contínuo da água e participação ativa de pescadores e ribeirinhos nas decisões que afetam o rio.

A carta também reforça que os pescadores do Rio Piracicaba são guardiões ambientais e defensores de primeira linha da biodiversidade, preservando saberes tradicionais e resistindo diariamente às pressões ambientais e econômicas.

 

A Atuação do Instituto Aimara: Organização, Defesa e Visibilidade

 

Neste primeiro semestre de 2025, o Instituto Aimara intensificou sua presença nas comunidades mais afetadas. Em Santa Maria da Serra, Piracicaba e São Pedro, seus representantes realizaram um levantamento sobre os impactos socioeconômicos desta tragédia com a família de 150 pescadores diretamente atingidos, garantindo informações e documentação para a instrução das investigações e futuras medidas de reparação. A atuação abrangeu:

  • Assessoria jurídica especializada — explicando direitos e precedentes, preparando casos e representando pescadores em audiências;
  • Articulação institucional — junto ao Ministério Público, CETESB, prefeituras e organizações da sociedade civil;
  • Mobilização e visibilidade — denunciando publicamente a falta de ação da Usina e pressionando por reparação imediata.

 

A Audiência no Ministério Público: diretrizes para o TAC e impasse com a Usina


Em 5 de agosto de 2025, o GAEMA/PCJ-Piracicaba convocou audiência na sede do Ministério Público do Estado de São Paulo. Estiveram presentes autoridades ambientais, representantes dos municípios atingidos, lideranças dos pescadores, o Instituto Aimara e os advogados Enéas Xavier, Rafael Azeredo e Letícia Helena Seguro, representando parte das comunidades afetadas.

A postura da Usina foi considerada evasiva: seu representante jurídico, Dr. Édson Ribeiro, declarou não ter poderes para decidir sobre um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) e limitou-se a coletar informações para levar à diretoria. O Ministério Público manifestou preocupação com a ausência de um interlocutor com poder deliberativo, interpretando como sinal de desinteresse e descaso institucional.

Na ocasião, o MP apresentou diretrizes gerais para um eventual TAC, incluindo:

  • reparação integral e compensação ambiental e social;

  • proibição total de lançamento de efluentes no Ribeirão Tijuco Preto;

  • repovoamento de peixes no Rio Piracicaba e no Tanquã;

  • recuperação de áreas degradadas;

  • monitoramento ambiental por no mínimo 10 anos;

  • auxílio emergencial financeiro aos pescadores;

  • criação de um comitê gestor com participação comunitária;

  • multas diárias em caso de descumprimento;

  • destinação de valores para o Fundo Municipal de Meio Ambiente de Piracicaba.


 A CETESB, por meio de seu diretor de controle, Sr. Adriano de Queiroz, confirmou que a Usina é definitivamente responsável pelo desastre, que a multa de R$ 18 milhões aplicada tornou-se definitiva na esfera administrativa, e que não cabe mais recurso.


Foi aberto prazo para manifestação da Usina que, em 20 dias, deverá especificar se aceita, ou não, sentar-se à mesa para a negociação de um TAC. Ainda, a pedido dos advogados presentes, determinou-se que os representantes da Usina, em uma próxima reunião, comparecessem dotados de poderes suficientes para a realização de acordo.


A Voz dos Pescadores


Na audiência, as lideranças pesqueiras falaram em nome de 150 famílias que há mais de um ano vivem sem renda. Expuseram a paralisação da pesca, a insegurança alimentar e a necessidade urgente de:

  • Auxílio emergencial imediato;
  • Participação direta nas decisões e acompanhamento das medidas de reparação;
  • Compensação justa pelos danos materiais e morais;
  • Recuperação ambiental efetiva, com retorno seguro da pesca.

As lideranças pesqueiras relataram que há mais de um ano vivem sem renda, sobrevivendo de doações e empréstimos que começarão a ser cobrados em 2026. O advogado Rafael Azeredo reforçou que os pescadores buscam restituição do auxílio emergencial, lucros cessantes por até 9 anos e indenização por danos morais. Enéas Xavier alertou que os pescadores não querem privilégios, mas apenas o que a lei e a jurisprudência garantem às vítimas de tragédias similares.

Thábata Frias Patrezzi, representante da “Cidinha Escola Náutica Piracicaba”, destacou a queda brusca no turismo de pesca e o fechamento de pousadas no Tanquã, além da diminuição do fluxo migratório de peixes para reprodução. Ressaltou que o auxílio do governo estadual foi um empréstimo, e não ressarcimento.

 

A Luta Continua

 

Para os pescadores, cada dia sem pesca é mais um dia de fome e endividamento. Para o Instituto Aimara, cada dia sem solução é mais um dia de injustiça. O caso do Rio Piracicaba não é apenas sobre um desastre ecológico: é sobre o direito à vida digna de comunidades que há décadas protegem e dependem do rio.

O Instituto Aimara seguirá atuando — do campo às negociações — para garantir que essas vozes não sejam silenciadas e que a justiça ambiental prevaleça.


quinta-feira, 10 de julho de 2025

UM ANO DA MORTANDADE DE PEIXES NO RIO PIRACICABA

Por 

Gian Carlos Rodrigues Machado, Presidente da SOS Rio Piracicaba

Thiago Assis de Souza Brito, Presidente do Instituto Aimara de Defesa e Educação Ambiental

 

a carta pode ser acessada na sua integralidade clicando AQUI

  


  

 Há exato um ano, o Rio Piracicaba foi palco de um dos episódios mais graves de mortandade de peixes da sua história recente, escancarando a vulnerabilidade do ecossistema aquático regional e os impactos cumulativos da degradação ambiental. Estima-se que aproximadamente 100 toneladas de peixes tenham sido encontradas mortas ao longo do leito e das margens do rio durante o episódio de julho de 2024, configurando um dos maiores desastres ambientais da bacia. Entre as espécies mais afetadas estavam curimbatás, dourados, piaus, traíras e lambaris, essenciais para o equilíbrio ecológico e para a subsistência das comunidades pesqueiras locais.

A mortandade de peixes provocou um colapso na biodiversidade aquática do Rio Piracicaba – queremos crer que temporário! –, com efeitos em cadeia sobre o ecossistema. A poluição das águas afetou não apenas os peixes, mas também aves, répteis e mamíferos que deles se alimentavam, muitos dos quais desapareceram da região. Espécies ameaçadas tiveram suas populações ainda mais reduzidas, comprometendo a resiliência ecológica da bacia.

Tão grave quanto os impactos ao meio ambiente foram as consequências socioambientais desse desastre que ainda permanecem vivas. Pescadores artesanais, ribeirinhos e comunidades tradicionais que dependem diretamente do rio para sua subsistência ainda enfrentam sérias dificuldades para retomar suas atividades. A redução drástica da fauna aquática afetou diretamente a renda de dezenas de famílias, intensificou a insegurança alimentar e comprometeu laços culturais e modos de vida historicamente vinculados ao Rio Piracicaba.

Atualmente, não vemos mais a mesma quantidade de peixes e variações de espécies verificadas antes desta tragédia. Muitas famílias abandonaram seus lares e foram buscar a sorte noutros lugares. Trata-se de uma perda de identidade: carregam consigo a tristeza, a saudade do que um dia foi a vida junto ao rio, tudo que deixaram para trás para prover a subsistência de hoje. Muitos adoeceram e vivem hoje a base de medicamentos, com distúrbios e condições médicas especiais desenvolvidos a partir da tragédia, da incerteza do dia de amanhã.

As ações de socorro às famílias afetadas não foram suficientes para contornar os prejuízos. Os valores suplementares pagos a título de seguro defeso não chegaram a tempo e cessaram antes que a atividade de pesca pudesse ser restabelecida. Neste sentido, as linhas de crédito excepcionalmente disponibilizadas somente serviram ao endividamento, pois, sem a retomada da renda, as famílias não conseguem honrar seus compromissos. 

As organizações signatárias desta nota — Instituto Aimara e SOS Rio Piracicaba — manifestam profunda preocupação com o estado atual do rio e reiteram que a proteção dos recursos hídricos não pode ser dissociada da garantia de direitos humanos, em especial dos direitos de comunidades que historicamente foram marginalizadas no processo de tomada de decisão sobre o território.

É urgente reforçar a fiscalização ambiental e a punição de crimes ecológicos, com transparência nas apurações e adoção de medidas de reparação integral de todos os danos pelos responsáveis por essa tragédia. Neste sentido, entendemos que:

·      Deve-se adotar ações de restituição, compreendendo a restauração ecológica plena do rio, da fauna e flora, o que inclui o repovoamento com espécies nativas afetadas, além da recuperação da qualidade da água e das áreas degradadas próximas ao leito, a retomada das atividades tradicionais de pesca artesanal e o acesso livre e seguro ao rio pelas comunidades que dele dependem para subsistência e práticas culturais.

·      Há que se implementar medidas de reabilitação. As comunidades pesqueiras atingidas enfrentam não apenas perdas materiais, mas também danos emocionais, sociais e culturais. A reabilitação exige a implementação de programas de apoio psicossocial, além de ações de capacitação e reinserção produtiva, com vistas à geração de renda alternativa enquanto os estoques pesqueiros não são plenamente reconstituídos. A reabilitação deve ser construída com diálogo direto com os afetados, garantindo o respeito às suas tradições e modos de vida.

·      Há que se proceder à compensação, diante das perdas irreversíveis causadas pela mortandade, devendo-se assegurar indenizações justas e proporcionais às famílias atingidas, considerando os prejuízos econômicos decorrentes da interrupção da pesca, a redução da renda, a insegurança alimentar e o sofrimento moral imposto. A compensação deve respeitar critérios objetivos e transparentes, com participação das comunidades na definição dos parâmetros e nos processos de avaliação e distribuição.

·      Como forma de reconhecer a gravidade da violação e valorizar o sofrimento das populações impactadas, há que se realizar atos oficiais de retratação, com ampla divulgação das causas e responsabilidades da mortandade. Isso deve incluir pedidos públicos de desculpas, cerimônias de memória ambiental e ações educativas nas escolas da região, contribuindo para a reconstrução do vínculo entre a sociedade e natureza, e para o fortalecimento da cidadania ambiental.

·      Por fim, para que episódios semelhantes não se repitam, é essencial a implementação de medidas estruturais de prevenção, como o reforço da fiscalização ambiental, o monitoramento contínuo da qualidade da água, a responsabilização efetiva dos agentes poluidores e a revisão de políticas públicas que impactam a bacia hidrográfica. Além disso, devem ser criados mecanismos permanentes de participação social, assegurando que pescadores, ribeirinhos e organizações da sociedade civil tenham voz ativa nas decisões que afetam o rio e seu entorno.

As famílias tradicionais que vivem da pesca no Rio Piracicaba são as verdadeiras guardiãs do território e da biodiversidade. São elas que conhecem cada ciclo do rio, que preservam saberes ancestrais e que resistem, dia após dia, diante das pressões ambientais, econômicas e institucionais. Esses pescadores e pescadoras, muitas vezes invisíveis às políticas públicas, são também defensores ambientais de primeira linha e merecem nossa mais profunda admiração, respeito e reconhecimento. Proteger o rio é também proteger os modos de vida que dele dependem.

Relembrar este episódio não é apenas um exercício de memória, mas um chamado à ação. A crise ambiental do Rio Piracicaba deve ser tratada como um alerta para toda a sociedade e uma prioridade permanente na agenda dos governos. Que os nossos filhos e as futuras gerações possam desfrutar de um rio vivo e de toda a riqueza de sua biodiversidade.